Permissão para ser feliz

Bruno Fratus viveu a angústia de quase ser medalhista por mais de dez anos. Até que hoje um bronze mudou tudo

Beatriz Cesarini Do UOL, em Tóquio (Japão) Jonne Roriz/COB

Bruno Fratus, assim que saiu da piscina após a prova dos 50m, foi até a borda oposta, aquela de onde tinha saído, e deu um beijo no bloco de partida. Quando estava esperando à frente do pódio olímpico, seu sonho de infância e uma obsessão que ele buscava desde Londres-2012, ele se ajoelhou e colocou a mão sobre a plataforma.

Nenhum brasileiro que subiu ao pódio em Tóquio entende tão bem o significado desses gestos quanto ele. Nenhum. Mayra Aguiar, com quatro Olimpíadas no currículo, já tinha subido ao pódio três vezes antes. Todos os outros brasileiros medalhistas em Tóquio-2020 até agora são estreantes nos Jogos, não tinham sofrido com o quase como Fratus sofreu.

Hoje estava ali eu e a piscina. Acabou. Eu e aquela raia e eu tinha de atravessar aquela raia. Minha mulher Michelle [Lenhardt] me falou antes da prova: 'se permita e vai ser feliz''."

Ele bateu na trave nas Olimpíadas de Londres em 2012 e no Rio, em 2016, se frustrou com um sexto lugar. Bruno, então, caiu em depressão e chegou ao fundo do poço, pensou em jogar tudo para o ar, mas, como ele mesmo disse, foi recuperado com amor. A emoção, o grito, o beijo em Michelle. Tudo isso foi reflexo de uma conquista que estava engasgada há 10 anos.

Jonne Roriz/COB
Satiro Sodré/SSPress/CBDA

#Foco

Bruno Fratus foi para Tóquio focado na prova dos 50m livre. O foco era tão grande que a comissão técnica optou por não colocá-lo na disputa do revezamento 4x100m livre. Deve ter feito falta: o time brasileiro até chegou à final da prova, mas terminou em oitavo lugar. Aquela equipe era uma das que poderia surpreender, mas as chances eram pequenas.

A decisão foi polêmica, mas se mostrou acertada. Em três dias, ele nadou três vezes abaixo de 21s7. Na quinta-feira, passou para a semifinal com o quarto melhor tempo - 21s67. Nas semifinais, conseguiu baixar ainda mais seu tempo ao nadar os 50m em 21s60 e carimbou de vez a vaga na grande final com a terceira melhor marca, que o colocou na raia 3. "Foi uma coisa muito boa estar no meio do Caeleb e do Ben (Benjamin Proud, do Reino Unido), que são dois caras que saem muito bem, e é sabido que a saída não é o meu ponto forte da prova. Então, deu uma referência muito boa. Ao mesmo tempo que tinha que ter a tranquilidade, você não consegue ver nitidamente, mas você percebe a água, percebe vultos assim. Eu sabia que se chegasse a um certo ponto da prova e estivesse ao lado deles, era caixa. Iria dar bom", contou.

Ele ficou apenas atrás do francês Florent Manaudou (21s53) e do campeão olímpico Caeleb Dressel (21s42). "Eu subi ao pódio ao lado de dois dos melhores velocistas da história. Caeleb tem todo o potencial para bater os feitos de Michael Phelps um dia, quem sabe. E Florent, é Florent, simples assim. O cara é uma besta, um monstro, é um dos melhores da história, e tenho orgulho de ser amigo dele e dividir um pódio com ele."

Vocês sabem que eu tenho uma cobrança muito grande em cima de mim. Então, às vezes o meu trabalho de psicologia é colocar o pé no freio. Tem gente que precisa acelerar. Motivar, mas eu sou um pouco o contrário, de ir com calma. E hoje, finalmente, consegui não me cobrar tanto. Foi incrível. Isso mostra o quanto você não faz a parada sozinho. Eu sou só o cara que sobe no bloco e dá o tiro."

Bruno Fratus

AFP PHOTO / MARTIN BUREAU

Raspou na medalha em 2012

Nas Olimpíadas de Londres, Bruno Fratus passou raspando do pódio. Ele pulou na piscina ao lado do compatriota César Cielo, que garantiu o bronze por apenas dois centésimos: Césão fez 21s59 e Fratus, com 21s61, acabou em quarto lugar.

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Frustração na Rio-2016

Nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, Fratus era a grande esperança de medalha e esperava, finalmente, chegar no pódio. O nadador chegou em sexto lugar, com o tempo de 21s79 -- acima do que havia feito em Londres 2012 -- e chegou a entrar em depressão

Satiro Sodré/SSPRESS/CBDA

A tão sonhada medalha

Fratus apostou os últimos cinco anos de sua vida nestes 21s57 de hoje. Ele só não nadou mais rápido que o norte-americano Caeleb Dressel, candidato ao posto de Phelps, com 21s07, e do francês Florent Manadou, ouro em Londres-2012, com 21s53.

Jonne Roriz/COB

O nadador mais consistente da história

Nas últimas 10 temporadas, Bruno Fratus esteve entre os melhores do mundo na prova dos 50m livre. Ele soma quatro medalhas em edições do Mundial de natação e sete premiações de Jogos Pan-americanos. Mais do que isso, Fratus é o nadador mais consistente da história da prova mais rápida da natação.

Fratus já completou a prova 91 vezes abaixo dos 22 segundos, e é o atleta que mais vezes atingiu essa marca na história. O americano Nathan Adrian vem atrás, com 65 vezes, e não participou dos Jogos de Tóquio.

"Eu queria agradecer dois caras: um é o César [Cielo, campeão olímpico em 2008 e medalhista de bronze em 2012 nos 50m]. Que mostrou que era possível há uns anos. E, se eu não tivesse tido a oportunidade de treinar e competir no começo da minha carreira ao lado dele, que eu acho que é o melhor velocista da história, eu não teria chegado aqui hoje. E agradecer publicamente ao Scheffão. Fernando Scheffer mostrou esta semana que era possível. E, cara, por várias vezes, quando eu estava ansioso, ele falava: 'se o Scheffão fez, você faz também'."

Disse uma vez que eu não tenho ídolo, mas vou usar a palavra aqui: o ídolo supremo, o cara que eu mais admiro, que eu cresci vendo, é o Fernando Scherer. Esse mostrou que era possível décadas atrás. Michelle, minha esposa, com certeza, o que ela falou antes de eu entrar na prova fez toda a diferença. E Brett Hawke, meu melhor amigo e meu técnico, que estava mais ansioso que eu."

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A mulher que salvou Fratus

Em 2016, Michelle Lenhardt assumiu o cargo de treinadora do nadador e marido Bruno Fratus por obra do acaso. O casal vive nos Estados Unidos e o técnico do brasileiro, Brett Hawke, não pôde mais acompanhá-lo nas competições. Em meio ao turbilhão de emoções após o resultado na Rio-2016, veio mais essa e Fratus entrou em depressão —hoje, ele admitiu que pensou até mesmo em suicídio. Michelle foi a peça fundamental para ajudá-lo a se reerguer.

"Foram cinco anos desde o Rio lidando com essa inquietude, com essa ansiedade... Dois meses depois do Rio, eu estava na pior depressão da minha vida, considerando sumir completamente da face da terra, se é que vocês entendem, de vez. Fui salvo pelo amor dos meus pais, fui salvo pelo amor da Michelle, fui salvo pela amizade e pelo amor do Brett (Hawke). Menos de seis meses depois do Rio, estava decidido que eu iria arregaçar em toda e qualquer competição que aparecesse até Tóquio", falou Fratus.

"A gente está junto há quase dez anos, mas foram cinco anos desde que ele precisou de mim na borda da piscina", disse Michelle. Eu falei: 'Vamos lá, vamos em frente, vamos ver o que a gente vai conseguir'. Isso aconteceu quando ele perdeu tudo, depois daquele resultado, entre aspas, infeliz, na maneira do público enxergar, mas foi quando eu falei: 'Peraí, não acabou ainda'. E ele falou o mesmo. Eu tenho mais para dar e a gente resolveu ir até 2017, ver o que acontecia nos Jogos Mundiais. A gente construiu a praça. Resultado muito expressivo. Depois do Mundial de 2017, a gente decidiu. OK. Vamos até os jogos, por que não? Então, a medalha foi construída desde novembro de 2016. Quando estavam os dois no tapete da sala, chorando sem saber o que ia ser do futuro".

Foi a melhor coisa que aconteceu na vida e na carreira de Fratus. O casal foi se adaptando e conciliou as relações marido/ mulher e atleta/treinadora. A reconstrução da depressão foi o ponto baixo de onde ele se reergueu para se tornar o gigante de hoje.

"Subi no pódio em todas [as competições desde que conseguiu lidar com a depressão]. A que eu não subi no pódio foi porque eu me estourei treinando, fui vítima da minha própria vontade, da minha própria força de vontade. Sempre querendo puxar água mais forte, querendo carregar mais peso, sempre querendo aguentar 100 mil metros a mais no treino. Sempre querendo dormir uma hora a mais. Não dando mole em alimentação e dieta. Porque em todos os episódios da minha carreira, a coisa sempre se resumia a uma pergunta: você quer ganhar ou quer perder?"

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Chef e pai de pets

Essa história de reconstrução estava seguindo os passos que Bruno e Michelle tinha traçado quando estavam sentados na sala de casa no Alabama quando o coronavírus mudou o mundo. Fratus precisou ficar isolado e usou a criatividade. Ele treinava com Michelle — que também é health coach — na sala de casa até que conseguiu dividir raias com pessoas comuns em piscinas públicas.

A rotina de treinos improvisada nem foi o "grande perigo" para sua preparação física. Para matar o tempo livre em isolamento, Bruno desenvolveu uma habilidade que não tem nada a ver com as piscinas: cozinhar. O nadador passou a colocar a mão na massa com receitas de guloseimas, pães e doces. Quem se divertiu com toda essa bagunça em casa foram os cachorros Harrison e Carlos, maiores companhias de Fratus e Michelle durante a pandemia. Agora, o atleta já tem que pensar no próximo menu para celebrar essa medalha ao lado dos que ama.

"Saíram duas betoneiras das costas. Vou poder dormir depois das 22h uma vez na semana", comemorou. "Vou chegar em casa, buscar meus cachorros, dar uma tosa neles, que eles estão precisando. Vou pegar uma garrafa de vinho, pedir uma pizza e sentar para comemorar com a minha mulher. Agora vou descansar."

Satiro Sodré/SSPress/CBDA

"Depois de Xangai [em 2011], meu primeiro Mundial, classifiquei com o primeiro tempo, na raia 4, caguei na calça na final, assumo. Não tive a manha de segurar a onda mentalmente e fiquei em quinto. No ano seguinte, Olimpíada de Londres, não tive a manha de segurar a onda nos últimos cinco metros de prova, afobei. Depois do Rio, até hoje eu recebo comentário. Tive de trocar de número porque eu recebia mensagem de galera nada a ver, falando um monte de besteira. 'Você foi grosso com repórter, você não merece isso'. Adjetivos e falando o que ia ser e o que eu não ia ser. É algo que, quando você está para baixo, te empurra ainda mais. Mas você também cria uma casca grossa. Até o dia em que eu me divirto. Tem dias que estou entediado em casa e começo a responder. Chamo em chamada de vídeo."

Bruno Fratus, sobre a carreira e sua relação com as redes sociais —que ele não olhou durante os Jogos, para manter o foco.

Satiro Sodré/SSPress/CBDA

FE-LI-ZÃO

A espera de mais de dez anos por esse pódio olímpico, e a frustração que gera você chegar sabendo que poderia subir ao pódio e terminar sem uma medalha, teve um episódio marcante na carreira de Fratus. Aconteceu em 2016.

Fratus esperava que sua consagração viesse diante da torcida brasileira. Não conseguiu. Saiu atordoado da piscina com o sexto lugar. "Tá chateado?", perguntou a repórter que o entrevistou logo depois. "Não, tô felizão, né? Fiquei em sexto", disse o nadador.

A resposta atravessada repercutiu mesmo com ele pedindo desculpas logo depois. A irritação era mais um gesto de defesa do que um ataque propriamente dito. Era um garoto que sonhava com aquele momento e se fechava para o mundo e para as críticas que ele receberia por não ter feito aquilo que ele achava ser possível.

Era uma armadura que o acompanhou até hoje. E que ele tirou com a mesma rapidez com que conquistou a medalha. Usando, inclusive, a mesma palavra: "Eu estou muito feliz. Aliás, estou felizão, mas, acima de tudo, eu estou muito grato hoje."

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