Peixe fora d'água

Bronze olímpico no 4x100m de Sydney 2000, Edvaldo Valério dá aulas... da borda da piscina

Denise Mirás Colaboração para o UOL, em São Paulo Jayme de Carvalho Jr./Folhapress

Nascido em Salvador, Bahia, Edvaldo Valério Silva Filho está com 43 anos e desde os 22 ouve que é o único brasileiro negro com uma medalha olímpica natação. Por que são tão poucos os nadadores negros da Bahia se 82% do total da população é negra?

"Por que não se consegue revelar um novo Edvaldo Valério em um universo como esse? Precisamos trazer essas questões para discutir como mudar esse cenário", destaca o "Bala", que enjoou de nadar, mas segue pelas beiras das piscinas ensinando seu esporte a crianças e adultos.

Gerente de Esportes da prefeitura de sua cidade e gestor do Centro Aquático Edvaldo Valério, com aulas em três clubes sociais, pedalar é paixão recém-descoberta. Como atividade física —e bem longe de qualquer competição.

Como nadador, acredita que demorou para estourar, mas depois da convocação para defender o Brasil no Mundial de Perth-1998, na Austrália, foi tudo muito rápido: mais dois anos, chegava a Sydney-2000 como atleta olímpico. E fechava o revezamento 4x100m do Brasil na batida de mão, na conquista da medalha de bronze ao lado de Gustavo Borges, Fernando Scherer e Carlos Jayme.

Sobre a Olimpíada de Tóquio, acredita que se destaquem Bruno Fratus e novamente o revezamento 4x100m livre. Diz que, apesar das dificuldades para treinar, vê com boas perspectivas. "Vou torcer pra caramba. Não somente por resultados individuais, que trazem evidência, mas para continuar trazendo a natação para a discussão novamente."

Jayme de Carvalho Jr./Folhapress

Cardume em potencial

Em Salvador, já são 145 crianças identificadas como talentos

UOL - Você deixou o esporte de alto rendimento em 2009. E agora, o que anda fazendo da vida?

Edvaldo Valério - Quando parei de nadar competitivamente, encontrei muita dificuldade para fazer essa transição de carreira. Hoje, sou gerente de Esportes da prefeitura de Salvador. Fui convidado para gerir a piscina que veio da Olimpíada do Rio 2016. Em paralelo ao público, trabalho como empresa: arrendo piscinas de três clubes para aulas de natação e hidroginástica, incluindo bebês e crianças especiais. Os valores cobrados são muito abaixo do mercado, para fomentarmos o esporte.

Até 2018, não havia uma piscina olímpica em toda a Bahia... E agora, como funciona o projeto com a prefeitura?

Se não fosse a pandemia, estaríamos a mil, lotados! Começamos a funcionar em fevereiro de 2019, com a piscina olímpica, que é um equipamento de performance, e outra semi-olímpica, que a prefeitura construiu ao lado. Fizemos três processos de inscrições, que são eletrônicas, e a cada uma surgem 10 mil inscritos. Fazemos um sorteio, também eletrônico, para 700, 800 alunos, que ficam com a gente por quatro, cinco meses.

A ideia é identificar talentos?

Sim. Nesse tempo, observamos crianças e adolescentes com potencial para o alto nível e os convidamos para fazer parte da equipe da Arena Aquática Salvador. Com a pandemia, fechamos duas vezes, mantendo contato com o aluno com aulas virtuais de movimentos da natação. Agora estamos funcionando, mas de forma reduzida — com restrições, limites de espaço e de horários.

E identificaram crianças com potencial?

Já temos 145! Mas Salvador, como cidade litorânea, tem suas peculiaridades. É difícil fidelizar o aluno, [é difícil] a piscina competir com o mar. E as crianças ainda não têm a dimensão exata do que é o alto nível, de tudo que se tem de abrir mão no Brasil. Aqui, qualquer atleta de alto rendimento é um herói, pela dificuldade de estrutura, de patrocínio, porque ainda fazem frente a países que são potências. Nesta realidade que não valoriza um quarto lugar, um décimo... esses caras são super-herois. Medalha é formalidade.

Greg Wood/AFP
Edvaldo Valério comemora o bronze do 4x100m livre com o tenista Guga Kuerten

Velocidade e resistência

Atleta raro, com capacidade para provas rápidas e longas

Você era um atleta raro, descoberto como velocista mas com excelentes tempos de fundista...

Sim. Mas só talento não faz campeão. Treinava muito, além da conta. Fazia 20 quilômetros por dia, sete dias por semana. De toda forma, é verdade: tinha tempos bons não apenas nas provas de velocidade, de explosão, dos 50m, 100m, mas também nas de meio-fundo e fundo, de 1500m. Até nas maratonas aquáticas.

Por que a natação?

Não tive poder de escolha. Comecei com 3 anos de idade, por problemas respiratórios. E por conta do meu pai, que foi um atleta mediano: fazia karatê, corrida de rua, jogava futebol... O pai idealiza, transfere a figura esportiva para o filho.

Isso pesou?

Não. Em momento algum, porque foi tudo bem encaminhado. Por isso a família é importante. Meu pai [Edvaldo] era o cara do financeiro, eu poderia dizer, e minha mãe [Aina] cuidava da parte operacional: levava e trazia, cuidava da alimentação. Mas minha família não tinha condição financeira para me manter no esporte. Os outros pais faziam rifas, para arrecadar dinheiro para minha passagem, hospedagem, e ainda assim muitas vezes eu dormia escondido no hotel. Foram muitos os que me ajudaram. Uma participação coletiva.

Você tem irmãos?

Tenho uma irmã mais nova, Valéria, mas que não foi para o esporte de alto nível. Ficou mais no mediano, como meu pai.

Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

Pedalando pela orla

Salvador tem mais de 30 quilômetros de ciclovias

Muita gente ajudou, mas você treinava muito, era determinado. Enjoou de nadar?

Desde criança batalhei demais, eram treinos duros. Se enjoei? Hoje, sim. Não consigo mais nada. Saturei. Não consigo mais nadar nem de forma prazerosa. Não vou dizer que nunca mais... De vez em quando, quando me dá prazer, eu nado. Mas agora corro, jogo bola, pedalo...

Salvador tem muitas ciclovias?

Na orla toda. Uns 30, 40 quilômetros. E dá para pegar estrada, ir para cidades circunvizinhas. Eu me encontrei no pedal. Estou adorando! Mas a parte competitiva não quero mais. Rotina, obrigação de acordar cedo, ter de ir treinar, conviver com dores...

Você tem dores de lesões?

Nunca tive lesão relacionada a natação. Nem de ombro, que nadador tem. Lesionei o joelho, mas jogando bola. E treinei muito mais do que deveria, inclusive. Muito volume, além do que esperavam de um velocista. Acho que por isso fui campeão. O que fiz, dificilmente outro faria. Abrindo mão de tudo que abri... E fazendo tudo o que fiz sem ter garantia de nada. Fiz porque acreditava que um dia podia ser campeão

Nick Wilson/Getty Images
Gustavo Borges (direita) foi referência na carreira de Edvaldo Valério

Gustavo no caderno

Reverência e referência: do "sofá de casa" para a medalha olímpica

Você viu o Gustavo Borges do sofá de casa em 1996 e em 2000 ganhava bronze olímpico com ele. Foi rápido, não?

Não. Tinha bons resultados como atleta regional, mas marcas do Norte/Nordeste não representam quase nada no nível nacional. Em 1996 acompanhei as duas medalhas do Gustavo em Atlanta e pensei: quero nadar junto com esse cara. Daí recortei uma foto dele do jornal e colei na contracapa do meu caderno.

Foi uma motivação. Como os papeis com meta de tempo do Cesar Cielo espalhados pelo apartamento...

Sim. Eu tinha de abrir aquele caderno obrigatoriamente, todo dia. Estava cansado, com sono na escola, mas via a foto e me dava aquela reenergizada. Pensava: no treino, de tarde, vou fazer o impossível. Busquei motivação assim. Daí foi rápido. A partir do momento que decidi que queria estar nadando junto com o cara.

Quando você foi chamado pela primeira vez para a equipe brasileira?

Para o Mundial de Perth, na Austrália, em 1998. Em 1999 fiz o Pan de Winnipeg, no Canadá, e em 2000 estava na Olimpíada de Sydney, na Austrália. Nadando com o Gustavo. Nadando e ganhando medalha com o cara. Veja o quanto é importante a gente ter uma referência. Tive oportunidade de falar para ele: "Você tem ideia de quantas pessoas inspirou e quantas ajudou a transformar? Eu sou uma delas."

Uma hora você vai ouvir o mesmo de algum campeão.

A gente precisa ter referência pessoal, espiritual, profissional... Colocar alguém como referência. Falo para os jovens: aonde é que você quer chegar? Como? Está fazendo o que a pessoa fez? Não sei se todo mundo está disposto a pagar o preço, que é alto. Não tive infância, juventude... Mas não estou reclamando.

Welton Araújo/Folhapress
Edvaldo Valério e o bronze olímpico: por mais Edvaldos no esporte de alto rendimento

Templo das águas

História podia ter sido mais aproveitada, como exemplo e motivação

Você ainda ganhou a medalha em um parque aquático fabuloso, e no país das águas...

É o esporte representativo da Austrália, sim, que tem uma piscina olímpica em cada esquina, mas me emociono mais com minha trajetória, até chegar naquele momento. Quando voltei em 1996, para um documentário, vi que estava igualzinho. Não tinham levantado uma parede, nada. Tudo conservado. Que incrível. E lotado com o público! Fiquei encantado. Esse é um legado verdadeiro.

No Brasil, um faz e quem vem depois destrói, em vez de conservar...

As politicas de incentivo poderiam ser melhoradas. Para os Jogos do Rio 2016 foi muita grana, mas descontrolada. Não ficou quase nada de legado. A Bahia tradicionalmente revela atletas, mas não consegue sustentar e a grande maioria sai, como eu mesmo, a Ana Marcela Cunha, o Alan do Carmo, o Breno Correia. Mas as coisas tendem a mudar. Não sei em quanto tempo, nem a que velocidade. Mas só o fato de Salvador agora ter uma piscina olímpica é um fio de esperança. E se o trabalho desenvolvido está dando resultado, quem vier não vai dar tiro no pé.

E você é referência.

Mas fui muito mal explorado por entidades da natação, por exemplo. Era para pegar minha história real e levar para o Brasil todo. Dizer: vocês podem acreditar que é possível construir o mesmo caminho que ele. Só que a gente perdeu o timing e não sei quanto tempo mais vamos esperar para ver outro nadador negro ganhar uma medalha olímpica. Eu poderia ter contribuído muito mais para o desenvolvimento da estrutura, principalmente na região Norte/Nordeste que ainda é carente dessa estrutura - e de grana, e de visão mesmo....

Reprodução Reprodução

Cadê um novo "Bala"?

Discutir oportunidades para atletas negros é preciso

Você diz com relação a motivar mais negros para a natação, como oportunidade de vida, mesmo?

Isso. Não para contar vantagem, nem me vitimizar. Sou o primeiro atleta negro da natação que conquistou uma medalha olímpica para o Brasil, mas estamos vivendo um momento muito oportuno, com discussões sobre a realidade e precisamos falar: por que tem tão poucos atletas negros dentro de um universo muito maior como aqui da Bahia, por exemplo, onde 82% da população é negra? Por que não se consegue revelar um novo Edvaldo Valério tendo uma população dessa? Ou a nível nacional, onde 55% da população é negra ou parda? Temos de trazer isso para a discussão de como podemos mudar esse cenário. Só espero que não se discuta pontualmente, que seja rotineira para se entender a realidade e como mudar - e não só surfar uma onda.

E, no caso do esporte, extrapolar do futebol.

No meu caso, a gente perdeu o timing de se divulgar uma história vitoriosa. Minha carreira foi pautada na resiliência. Fui me reinventando, mesmo pensando várias vezes em abandonar tudo. Por quê? Por não enxergar perspectiva, pensar: para quê estou fazendo isso? Tinha resultados expressivos na adolescência, mas é muito conflito também. Um atleta tem uma rotina muito puxada e aqui no Brasil uma hora vai ter de escolher, porque uma pequeno porcentagem consegue se manter.

É preciso criar oportunidades.

Há uma diferença com o futebol. Uma criança de 8, 10 anos, diz que quer ser jogador de futebol para ajudar a família. Na natação, não vê essa perspectiva de ganhar dinheiro. Se perguntar a ela, nem sei o que vai responder, mas não será o mesmo que a criança ligada ao futebol. Sei que posso contribuir para essas discussões, entender necessidades, porque a realidade na Bahia não é igual ao Rio, a São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul... Atletas negros no geral, em diferentes realidades, são excepcionais: Lewis Hamilton na Fórmula 1, Simone Biles na ginástica, Tiger Woods no golfe. É preciso criar mais oportunidades.

Você está com um filho nessa idade de escolher, não?

Sim. O Eduardo está com 17 anos. Joga futebol. Leva jeito... tirando a paixão de pai. Mas é o que digo: vai depender dele. Eu quis. E ele? Está disposto a pagar o preço, abrir mão de tanta coisa? No Brasil, nessa ou vai para o alto nível ou 'vai trabalhar'. Ele está consciente disso. Passo minha experiência para ele, mas não existem atalhos. Estou aqui para ajudar, mas o caminho é ele que vai percorrer.

E tem a Lavínia...

Dois anos e nove meses. Um terror! Cheia de energia. Em breve vai para a natação queimar energia... É uma menina arretada. E gosta de água pra caramba.

Uma "Balinha"!

Ormuzd Alves/Folhapress/Ormuzd Alves/Folhapress Ormuzd Alves/Folhapress/Ormuzd Alves/Folhapress

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