Henrique Avancini estava sem camisa quando tirou uma selfie com a também ciclista Ana Polegatch após uma etapa de Copa do Mundo de Mountain Bike em Petrópolis (RJ), há uma semana. Ela explicou a razão: o ídolo do MTB brasileiro distribuía autógrafos e resolveu presentear um fã que havia ido pedalando até lá, só para vê-lo, e deu a ele sua própria camiseta. Por um fim de semana, Petrópolis, terra de Avancini, se transformou em Meca para uma cada vez maior legião de fãs de mountain bike. Não é todo dia que se vê os melhores do mundo de perto. E mais importante: uma enorme comunidade, crescente, não quer perder a chance de fazer parte da história construída pelo petropolitano. No futuro, pais e avós contarão que estiveram lá, e respiraram o mesmo ar que Avança (como o chamam) respirou em uma Copa do Mundo no Vale do Cuiabá. É Avancini quem me vem à mente quando penso em Daniel Nascimento, de 23 anos. No domingo, em Seul, na Coreia do Sul, ele se tornou o maratonista não africano mais rápido da história. Pense: em todas as pessoas que um dia correram a prova mais clássica do esporte mundial e que vieram da Ásia, da Europa, da América ou da Oceania, nenhuma delas foi tão rápida quanto Danielzinho, nascido em Paraguaçu Paulista (SP). É um feito extraordinário. E é só o começo. Avancini e Danielzinho não poderiam ter histórias de vida mais diferentes, mas são muito parecidos no mais importante: ocupam uma lacuna de carência de ídolos em esportes de massa. O ciclismo sempre foi grande, especialmente o mountain bike, praticado à margem das grandes cidades, mas faltava aquele cara que faz o fã acordar cedo no domingo e ligar a televisão para vê-lo competir. Avança fez isso, a ponto de a Red Bull TV, que transmitia a Copa do Mundo até o ano passado, montar equipe para transmissões em português. Mesmo sem ter conseguido "furar a bolha", Avancini tem meio milhão de seguidores no Instagram (o mesmo que o campeão olímpico Thiago Braz) e, antes da pandemia, colecionava 18 patrocinadores. Na esteira dele, as marcas passaram a investir mais no ciclismo brasileiro, que tem um circuito cada vez mais forte, com mais atletas profissionais, mais torcedores, mais tudo. O que um ídolo não faz, né? E aí voltamos para Danielzinho. Por causa dele, no sábado à noite, havia 4,7 mil pessoas assistindo a Maratona de Seul no canal de Youtube Corrida no Ar. E mais algumas tantas mil na concorrente Corra K.O. Ruivo — agora elas somam 42 mil visualizações. Isso antes de "nascer a lenda", como escreveu o Ruivo, sobre o resultado do brasileiro. Considere que: 1) Danielzinho tem 23 anos, enquanto o recordista mundial Eliud Kipchoge correu sua primeira maratona aos 31; 2) o brasileiro tem experiência de quatro maratonas, sendo só três delas concluídas, e ainda está aprendendo estratégia de provas de rua (apostaria que ele não tem 10 na carreira toda); 3) em Seul, para completar a prova em 2h04min51, ele fez os últimos 5 quilômetros mais rápido que os dois atletas que chegaram logo à sua frente, sendo um deles medalhista de prata no último Mundial. A partir daí, note o potencial de Danielzinho para resultados históricos. Mas o xis da questão é como esses resultados podem ser transformadores do esporte. A cultura do pedestrianismo está enraizada em grandes centros do mundo todo (Boston está parada para a Maratona de Boston enquanto esta newsletter é publicada), incluindo o Brasil. O blog Decorrido contabilizou que, em 2019, 33 mil brasileiros concluíram uma maratona, números ainda modestos, mas mais do que o triplo dos 10 mil de 2011. Os números explodiram exatamente na lacuna entre o último resultado expressivo do Brasil em maratonas (o quinto lugar de Marilson dos Santos na Olimpíada de Londres, em 2012) e o surgimento de Danielzinho. Para manter o exercício de projeção: imagine como esses números podem ser impactados por um atleta brigando de igual para igual entre os melhores do mundo. Arrepia só pensar em ligar a TV para ver uma Maratona de Londres, Nova York, Boston, e Danielzinho estar lá nas cabeças. Com o resultado que fez em Seul, o brasileiro por um bom tempo vai poder escolher que maratona correrá, e ainda ganhar uma bolada de cachê. Só na Coreia do Sul, pelo terceiro lugar e pelo tempo (recorde brasileiro e sul-americano), levou a bagatela de US$ 130 mil (mais de R$ 600 mil). Patrocinado pela Adidas e com independência financeira, não vai precisar de confederação ou do COB (como Avancini, aliás) para definir seu calendário de provas. Danielzinho já tem seu próprio destino em uma mão — na outra, o destino do pedestrianismo no Brasil. |