Brasileiro luta por título no kickboxing e para "resolver" briga de criança
Ex-campeão dos meio-pesados do Glory World Series, maior evento de kickboxing do mundo, o brasileiro Saulo Cavalari terá a chance de recuperar o cinturão da categoria na madrugada deste sábado (24), em evento da franquia agendado para Chicago (EUA). Mas, para ele, a luta valerá mais do que isso. Acredite: no ringue, o curitibano terá a chance de “resolver” uma briga de criança.
Nascido e criado em Caiuá, bairro pobre da capital paranaense, Cavalari, aos oito anos de idade, envolveu-se – ou melhor, foi envolvido – em rixa de “gangues-mirins”. O lutador conta que a sua região, por receber muitos imigrantes, é recheada de disputas identitárias. Seus irmãos, certa vez, compraram briga na rua com um grupo de descendentes de russos, chegaram em casa eufóricos e sentenciaram: “Saulo, você, o nosso caçula, terá de pegar o mais novo deles”. Recomendaram, ainda vibrantes, treino ao garoto, porque o combate seria “barra pesada”.
Cavalari, de pronto, empolgou-se. Treinava sozinho, do jeito que dava, e até sonhava com o dia de finalmente encerrar a querela, de dar uns bons sopapos no russinho. No fim, nem ele nem os irmãos saíram na mão nas vielas de Caiuá. O “pega”, previsivelmente, não passou de um bate-boca juvenil.
Apesar do desenlace frustrante, o episódio foi determinante para Saulo. Desde então, insistiu para a mãe: queria fazer aula de alguma arte marcial, aprender a lutar. Depois de muita aporrinhação, e com a condição de que não descuidaria dos estudos, Dona Cida lhe colocou para treinar kickboxing, esporte de trocação intensa. Duas décadas mais tarde, o agora lutador profissional disputará um título mundial – e justamente contra um russo. Um "acerto de contas" meio torto.
Na madrugada de sábado, seu adversário será Artem Vakhitov, o atual campeão. “Essa história da minha infância, que tem a ver com o início da minha carreira, volta à minha cabeça neste momento”, lembrou-se, bem-humorado, em entrevista para o UOL Esporte. “Lutarei contra um russo, é muito engraçado isso”, prosseguiu.
Vakhitov é um velho conhecido de Cavalari: os rivais fecharão trilogia no Glory. No primeiro encontro, vitória por decisão dividida para o brasileiro. No segundo, o russo levou a melhor por decisão unânime. “Desta vez, o que tenho de fazer de diferente é lutar com o coração. Claro, vou usar estratégia, chutá-lo bastante. Mas vou colocar bastante determinação na luta. Ele é um rapaz completo, inteligente. Tem um jogo clássico, de bater e sair rápido, e meu plano é interrompê-lo neste movimento”, explicou Saulo, o único atleta a bater Vakhitov no Glory, franquia pela qual o russo se apresenta desde 2013 e na qual fez oito combates.
O brasileiro, profissional desde 2009, tem 19 lutas no cartel, com apenas quatro derrotas. São nove combates pelo Glory, com sete triunfos. Ganhou notoriedade em 2014, ao se sagrar campeão do torneio meio-pesado da organização. No ano seguinte, nocauteou o congolês Zack Mwekassa para conquistar o título da categoria, posto que viria a perder em 2016, justamente no revés para Vakhitov. É uma revanche dupla: pelo cinturão e pela infância.
“Cassius Clay” brasileiro, filho de mãe guerreira
Cavalari “perdeu” o pai para as drogas: separaram-se quando o garoto tinha apenas três anos. “As lembranças que tenho dele não são muito boas”, confessou.
“Ele usava droga e tinha problema de alcoolismo. Lembro-me que minha mãe me levou para visitá-lo na cadeia e, de dentro das grades, ele me deu um doce. Mais tarde, lembro-me de tê-lo visto pela última vez. Isso foi uns 10 anos depois. Minha mãe apontou a um mendigo na rua e me disse: ‘leve esses documentos àquele homem. É seu pai’. Entreguei, simplesmente entreguei, não falei nada”, contou o lutador curitibano, agora com a voz embargada e vacilante.
“Ele adoeceu e morreu de tuberculose. Sei que me procurava no fim da vida. A essa altura eu já era lutador, fazia apresentações internacionais. Pouco antes de morrer, e isso a família dele que me conta, ficou sabendo que me encontraram. Nós nunca mais nos vimos”.
Foi Dona Cida, a “mãe guerreira”, quem lhe criou na periferia da cidade paranaense, solteira por um tempo e depois ao lado de outro marido, um padrasto a quem Saulo se refere com gratidão e deferência. “Quando entro no ringue, lembro-me das dificuldades que minha mãe passou. E também do meu avô, que em vida perdeu tudo o que tinha. É por eles que eu luto”, prosseguiu.
Saulo “Cassius Clay” Cavalari. É assim que o brasileiro é apresentado e conhecido no mundo da luta: com o nome de batismo da lenda do boxe Muhammad Ali como apelido. “Foi um antigo treinador quem começou a me chamar assim, eu tinha uns 13, 14 anos. À época, por causa do cabelo, tinha semelhança grande com o lutador. Fui ao Japão com esse nome de guerra. Pegou e eu gostei. Tenho grande respeito pelo Ali, tanto pelo que ele fazia dentro como pelo que fazia fora do ringue. Tenho muito orgulho de levar esse nome comigo”, encerrou.
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