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25/05/2010 - 07h00

Entre boxe e livros, paulista escolhe as luvas após 'ultimato' e ouro no Mundial juvenil

Maurício Dehò
Em São Paulo
  • David Lourenço foi campeão mundial juvenil de boxe ao vencer o torneio realizado em Baku, Azerbaijão

    David Lourenço foi campeão mundial juvenil de boxe ao vencer o torneio realizado em Baku, Azerbaijão

Com 18 anos de idade, David Lourenço chegou apenas à sétima série, fruto de sua aposta na carreira esportiva, incentivada pelo pai e professor de boxe Ailton. Preocupado, pensou em largar as luvas e arranjar um emprego, em busca de um futuro mais garantido. Mas no distante Azerbaijão e com as cinzas de um vulcão e seis adversários pelo caminho, ele venceu o que era um ultimato: o juvenil faturou o primeiro ouro brasileiro em mundiais na história do pugilismo nacional e confirmou sua escolha, mantendo o sonho no boxe.

O paulista de Guarulhos conseguiu um feito inédito, uma vez que mesmo com quatro campeões mundiais no profissional, nunca um brasileiro havia conquistado um título em mundiais, mesmo na categoria adulta. O resultado veio no último dia 3, quando ele venceu seu sexto rival na cidade de Baku e subiu ao degrau mais alto do pódio.

Algumas semanas antes, no entanto, o hoje campeão mundial na categoria até 69 kg pediu ao pai para parar e, mirando ganhar mais do que seus R$ 475 mensais em ajuda de custo, chegou a cumprir por um mês o trabalho de segurança em uma concessionária de veículos antes de aceitar a oportunidade de lutar o Mundial e mudar seu futuro.

COMO SEGURANÇA, UM EXCELENTE PUGILISTA

Ele pediu para largar o boxe e ir trabalhar, então arranjei um emprego de segurança na concessionária em que trabalho. Ele ficou um mês, mas eu chegava de manhã e ele estava dormindo, tinha que acordar sem ninguém perceber. Então, falei: 'vai lá (no Mundial) e, se quiser, na volta a gente para'

AILTON, pai de David, sobre a tentativa de o garoto ter um emprego e deixar o boxe

David começou no boxe por influência do pai, que chegou a ser lutador. Um semifinalista da Forja de Campeões, Ailton teve seis filhos e teve de escolher entre treinar ou sustentar a prole. Porteiro em uma concessionária de veículos importados - sua mulher é faxineira no mesmo local -, viu nos filhos um meio de atingir seu sonho.

“Eu já treinava em casa e um dia o David viu dois pesos pesados na TV e pediu para treinar”, diz o pai, seu primeiro técnico, desde os 4 anos. “Primeiro eu colocava chinelos nas minhas mãos para ele bater, depois fui amarrando espumas no meu corpo. Mas ele foi ficando muito forte e tive que arranjar um pneu de caminhão, porque não tinha dinheiro para comprar um saco de pancadas.”

O garoto que atualmente mede 1,69 m, pouco para sua categoria, já compensava na força e na pegada firme. Sabendo que não poderia criar um campeão sozinho, Aílton levou David para uma academia, em que aperfeiçoou a técnica até se tornar campeão brasileiro cadete em Cuiabá. Com o resultado ganhou o convite para a seleção e, um ano depois, após muita indecisão, viajou para o Azerbaijão.

“Eu cheguei e falei para o meu pai que ia desistir do boxe”, conta o garoto, que tenta inscrição para o Bolsa Atleta, para tentar ganhar R$ 2,5 mil mensais após a conquista.

“Teve um tempo que eu conseguia dividir o tempo dos treinos com os estudos. Mas fui chamado para a seleção e de lá para cá as viagens não deixaram mais conciliar. Vi que tinha de ser um ou outro e vinha treinar desanimado...”, recorda ele.

O pai admite que se preocupou em forçar o caminho de David no boxe, mas tinha confiança no sucesso do rebento. “Eu sonhei tanto com um Mundial, que falei para ele “vai lá, disputa só este Mundial e, se quiser, na volta a gente para”, conta Ailton, lembrando que a tentativa do garoto de ser segurança não deu certo, já que David sempre dormia no serviço.

VULCÃO QUASE ABREVIOU CARREIRA

  • Arquico

    David Lourenço decididiu que o Mundial poderia ser sua última competição, e quase um fenômeno da natureza é que encerrou seu sonho. A erupção de um vulcão na Islândia, em abril, causou caos no sistema aéreo da Europa devido às cinzas espalhadas e quase cancelou a competição, que chegou a ser adiada em três dias. “Falei: ‘pronto, por causa desse vulcão ninguém vai mais”, conta o campeão juvenil. Apesar de terem de aguardar a diminuição do problema, os brasileiros puderam viajar, e David teve a chance de se manter no boxe.

Nem David apostava no título. Pressionado pelo ultimato dado por ele mesmo para o boxe, ele conta que consegui relaxar após os primeiros combates, focando apenas nas lutas.

Centrado, teve de virar um importante duelo na semifinal, contra o adversário mais duro de sua chave, o alemão Denis Radovan. Perdendo por dois pontos, conseguiu se recuperar e na decisão teve mais facilidade para comemorar o ouro.

Os técnicos Claudio Aires e João Carlos Soares é que tiveram de acordar o pupilo. “Nós encostamos ele no corner e explicamos: “a medalha de ouro depende de você. Procura ele e solta golpe”. Ele disse: “pode deixar comigo”. Foi o momento crucial”, explica Aires.

O técnico estava tão extasiado na final que, mesmo com David vencendo, foi expulso do corner com poucos segundos para o soar do gongo.

“Naquele momento eu pensei em todo mundo”, lembra o jovem pugilista. “Graças a Deus ocorreu tudo bem para mim, eu estava com muita determinação para ganhar”. Em homenagem, a medalha ficou com o pai, que a guarda ao lado da cama.

Duas semanas após a conquista, David parece seguro. O caminho certo é o boxe, em busca de novos pódios, medalhas e um cinturão mundial. Entre os novos objetivos ele já põe as Olimpíadas da Juventude, em agosto, e voos mais altos, afinal, em dois anos é tempo de Jogos Olímpicos.

“Vou tentar uma vaga para Londres e outra para o Rio-2016. Mas sei que tenho de treinar muito, porque os adversários daqui são complicados”, conclui o jovem, esbanjando maturidade de campeão mundial.

Enquanto isso, Aílton segue sua carreira de técnico nas horas vagas - sempre à noite, após o serviço. Hoje ele ensina 15 pessoas gratuitamente dentro de sua casa, em busca de mais um vencedor.

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