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Luiz Fernando Gomes: 'A América que a gente faz'

27/11/2018 07h30

A incompetência da Conmebol não é novidade. A falta de preparo das polícias, seja no Brasil ou na Argentina, há muito é notória. Assim como a incapacidade das autoridades daqui e de lá para lidar com as torcidas organizadas. Toda essa gente, como sempre, teve culpa na baderna do Monumental de Nuñes em Buenos Aires que levou ao adiamento da decisão da Libertadores. Mas, em que pese tudo isso, há um outro lado nessa questão: quando é que os hermanos, o que também vale para nós, vão aprender a torcer? Quando, como cidadão, o torcedor vai fazer a sua parte?

Por mais que o esquema de segurança tenha falhado - é inexplicável, por exemplo, a proximidade dos barra bravas do River no trajeto do ônibus do Boca em direção ao estádio - o comportamento selvagem de quem arremessa objetos contra o adversário, que desafia a polícia derrubando barreiras, pisoteando crianças e idosos é injustificável por si só. São cenas de pura barbárie. Como bárbara foi a imagem que a TV mostrou de uma mulher colando sinalizadores no corpo de uma criança para burlar a vigilância da polícia na revista à porta do estádio.

Entra ano, sai ano, Libertadores, Sul-Americana, Brasileirão, Liga Argentina a história se repete. Como não associar os tumultos de sábado ao gás de pimenta jogado nos vestiários da Bombonera que custou a eliminação do Boca na Libertadores de 2015, num jogo contra o próprio River? Ou a invasão do Maracanã pela torcida do Flamengo na final da Sul-Americana contra o Independiente em 2017? São incidentes que contam, tanto quanto as vitórias e derrotas em campo, à história do futebol do continente. Tristes páginas dessa história.

Dessa vez, os agravantes são muitos. E os prejuízos foram incomensuráveis, atravessaram o Atlântico e o Pacífico. O jogo, apresentado como a maior final de todos os tempos ou a final do fim do mundo, seria transmitido para mais de 60 países. O horário foi escolhido para aumentar a audiência na Europa, para atender ao público latino que vive nos Estados Unidos. E o que seria uma vitrine, uma demonstração da força de um "novo" futebol Sul Americano para o mundo acabou se tornando um vexame que não tem precedentes. Uma vergonha planetária.

Enquanto a Conmebol e autoridades de segurança trocavam acusações sobre responsabilidades, argentinos anônimos e famosos foram às redes sociais demonstrar sua revolta. Bruno Marioni, que foi campeão da Libertadores com o Boca em 2007, perguntou "Alguma vez podemos fazer as coisas direito na Argentina? Apenas uma vez?". A jogadora Luana Florencia, da seleção feminina de futebol, seguiu a mesma linha: "Quando chegará o dia em que, como argentinos, faremos autocrítica? Temos o que merecemos como país", escreveu ela. Não poderíamos ser nós a tratar de uma cena ocorrida no Brasil? É claro que sim.

Mas que ninguém se iluda. A baderna de Nuñes certamente não será a última. Toda essa indignação de ocasião vai virar em pouco tempo a tolerância de sempre. A cartolagem, os torcedores e boa parte da mídia vão, já, já, retomar o discurso de que isso é Libertadores. Sim, por incrível que pareça, a Libertadores dos escudos da polícia para proteger quem bate escanteio, dos estádios invadidos, dos gestos e dos cantos racistas, das emboscadas e do gás de pimenta é justificável, mais do que isso, é até motivo de orgulho para muita gente. E está longe de deixar de ser assim.

O que se passa nos estádios da América do Sul vai muito além do futebol. É uma questão cultural. Da cultura da violência, do levar vantagem em tudo e não saber perder, do radicalismo irracional, da intolerância contra os diferentes. É algo que, seja na Argentina, seja no Brasil, os estádios apenas refletem. Não geram. E só haverá um futebol melhor quando houver uma sociedade melhor.