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FC Rosengard e desigualdades do futebol feminino na Uefa viram filme

24/09/2018 08h20

"Fundei o clube no fim do ano passado com o intuito de provar ao mundo que as mulheres não são as criaturas 'inúteis e ornamentais' que os homens imaginaram. Torço pelo dia em que as mulheres irão sentar no Parlamento e ter uma voz ativa na direção dos acontecimentos, especialmente naqueles que lhes dizem mais respeito." Essas foram as palavras de Nettie Honeyball, pseudônimo de Mary Hutson, ao falar sobre a fundação do British Ladies' Football Club, o primeiro time de futebol feminino da história.

Mesmo após 124 anos desde a criação da equipe britânica, o panorama no futebol feminino está longe de se equiparar ao masculino - seja em termos financeiros, estruturais ou de visibilidade. E até as maiores equipes do mundo sofrem! Prova disso é o FC Rosengärd, retratado no longa "Futebol para melhor ou para pior", que estreou neste domingo na mostra competitiva do Cinefoot com o apoio da Embaixada da Suécia e do projeto Diálogos Nórdicos.

Cotada ao prêmio de melhor jogadora do mundo nesta segunda-feira, Marta jogou no Rosengärd de 2014 a 2017, sendo peça importante no desenvolvimento do filme. Além disso, há ainda a transição de Therese Sjögran de jogadora de futebol a diretora esportiva de suas ex-companheiras. Ao LANCE!, a diretora Inger Molin explicou o que lhe motivou inicialmente na produção do longa-metragem.

- Foi quando me explicaram como a Uefa divide o dinheiro da Liga dos Campeões entre time de futebol masculinos e femininos. 99,8% vai para os homens e 0,2% para as mulheres. Isso significa que o dinheiro sequer cobre os custos que as equipes femininas têm nas primeiras rodadas do torneio. Para um jogo fora de casa que o FC Rosengärd teve na Rússia, contra o Ryazan-VDV, elas tiveram que pedir apoio financeiro à cidade de Malmö para poder participar e pagar pelos custos da viagem - revelou.

O panorama financeiro desigual se estende também à Fifa: em 2015, a equipe dos Estados Unidos foi campeã da Copa do Mundo feminina e recebeu um prêmio de 2 milhões de dólares (R$ 7,6 milhões) da Fifa. Já à França, campeã do Mundial masculino em 2018, foram repassados 38 milhões de dólares (R$ 145 milhões). A diferença é alarmante.

A Fifa irá definir quanto dinheiro será destinado às equipes participantes do Mundial feminino de 2019 nos dias 25 e 26 de setembro. Dado o nível das cobranças para extinguir a disparidade salarial de gênero no futebol, espera-se que o montante cresça em relação a 2015 (15 milhões de dólares). Todavia, ao analisar o esporte feminino, é preciso ir mais a fundo do que o simples discurso de que 'mulheres ganham menos', o que é proposto por Inger em "Futebol para melhor ou para pior".

- Assim como outros muitos clubes de futebol, o FC Rosengård é dependente de patrocinadores. É a boa vontade e o apoio financeiro de empresas que não só querem adquirir contatos comerciais, mas também querer agregar valores sociais a suas marcas. O clube sofre para conseguir mais patrocínios, e foi frustrante entender que nem mesmo um time, que é um dos melhores do mundo, conseguiu fazer isso acontecer. Durante o tempo que acompanhei o clube, a Uefa não demonstrou qualquer interesse em alterar a divisão de dinheiro entre as Ligas dos Campeões masculina e feminina. Alguns dizem que a mudança está por vir, mas o ritmo é muito, muito lento - completou.

O filme ainda mostra os desafios de Therese Sjögran, lendária jogadora de futebol na Suécia e recentemente contratada para o cargo de diretora esportiva do FC Rosengärd. A ex-meia coleciona 18 anos em sua seleção e 214 atuações, mais que qualquer outro jogador sueco, seja homem ou mulher. Além de ter que comandar suas antigas companheiras de clube, Therese ainda contava com uma frustração pessoal: a saudade dos gramados.

- Acho que a parte mais difícil para ela foi estar de fora de campo. Quando era hora de jogar partidas importantes, como nas quartas de final da Liga dos Campeões, ela mesma queria participar. Ou então quando a Suécia foi às Olimpíadas em 2016, foi difícil para ela não fazer parte daquilo (ela jogou quatro Copas do Mundo e três Olimpíadas) - disse Inger.

Marta é uma das estrelas do filme

Indicada ao prêmio de melhor do mundo, que será anunciado pela Fifa nesta segunda-feira (a partir das 15h30 de Brasília), Marta é uma das peças centrais de "Futebol para melhor ou para pior". Hoje, a atacante brasileira está no Orlando Pride, dos Estados Unidos - mas a camisa 10 defendeu o Rosengard entre 2014 e 2017, quando o filme foi gravado.

Para os parâmetros do futebol feminino, a presença da Rainha na mídia é notável. Não é totalmente incomum ver Marta como garota-propaganda de marcas e iniciativas - mas onde estão as outras atletas? Inger não crê que o 'excesso' de atenção à brasileira possa criar a impressão de que ela é a única craque que a modalidade terá na história.

- Acho que o futebol feminino precisa de superestrelas que atraiam publicidade, que tenham uma história forte. No caso de Marta, ela era uma garota pobre do interior, lutando para conseguir jogar futebol. (Contrariando) ambas as ideias de pobreza e a opinião social de que mulheres não deveriam jogar bola, mas ela foi e fez mesmo assim. Ela jogou com meninos na rua, primeiro sem chuteiras e depois com chuteiras que eram grandes demais que ela ganhou de um vizinho. Marta é uma boa história, e a mídia precisa de histórias. Isso é bom para o esporte feminino, porque ela pode liderar, ajudar a trazer mudança - disse a diretora.

Por que discutir gênero no esporte?

As desigualdades no futebol são apenas um reflexo de uma desigualdade que se faz presente em toda a sociedade. As estruturas sociais precisam ser discutidas antes que haja, de fato, uma mudança. Essa é a torcida de Inger: que seu filme ajude a incentivar o debate.

Presidente do Rosengard, Klas Tjebbes falou ao L! sobre as premissas para o desenvolvimento do futebol feminino pelo mundo. Afinal, seria tão fácil para o Brasil investir no esporte tanto quanto a Suécia, mesmo tendo um território de proporções muito maiores? Para o mandatário, independente da extensão do país, o planejamento precisa ser guiado pela vontade da confederação nacional em trazer equidade ao futebol.

- O foco tem que estar nas pequenas meninas, não importa o tamanho do país. São as equipes locais de futebol que precisa de apoio, isso vale para todos os lugares do mundo. A Confederação de futebol nacional precisa mostrar uma ambição e ter vontade de ver as diferenças de gênero, as estruturas, e estar disposta a fazer algo sobre isso. A Confederação precisa tornar possível para as regiões e os clubes locais apoiarem as meninas - refletiu.

A partir de 2019, clubes brasileiros que não tiverem um plantel de futebol feminino em competições nacionais não poderão disputar a Libertadores. A estratégia de aliar o esporte das mulheres aos dos homens não é de toda ruim, mas deve ser abolida a longo prazo, como avaliou Tjebbes. O presidente do Rosengard torce para que um dia não existam clubes de futebol feminino ou masculino - e sim apenas clubes de futebol.

- A curto prazo, poderia ser uma vantagem ter clubes apenas com mulheres. Mas me parece errado, ideologicamente, separar mulheres e homens em clubes diferentes a longo prazo. Acho que ambos deveriam jogar nos mesmos clubes, mas isso requer que os homens tenham um verdadeiro e profundo entendimento, respeito pelo futebol feminino. É preciso que eles realmente pensem que o futebol feminino é tão importante quanto o masculino. É um desafio, mas tenho certeza que eles vão conseguir - finalizou.

* Sob supervisão do editor Hugo Mirandela