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100 anos do Parque Antártica: A ousada ideia de comprar um parque

18/04/2017 07h00

"O Palestra Itália nasceu, em 1914, com o pensamento de ter uma casa. Na ata de fundação há um trecho: "O clube precisa ter uma casa, não só um campo para jogar, mas uma casa para abrigar toda a colônia italiana". E conseguimos.

José Ezequiel de Oliveira Filho, pesquisador da história palmeirense, palestrino de 62 anos, se emociona ao falar sobre o estádio alviverde. E, de fato, há muito sentimento na atmosfera do Allianz Parque. Por baixo das toneladas de aço da arena existem raízes centenárias com a Sociedade Esportiva Palmeiras. Na próxima sexta-feira, 21 de abril, completam-se 100 anos do primeiro jogo do clube o no terreno de sua casa amada. Para celebrar a data, o LANCE! preparou uma série de quatro capítulos (um por dia até sexta) e diversos outros materiais especiais. Neste primeiro episódio, vamos recordar a compra do Parque Antarctica pelo Palestra, fruto de ação ousada que mudou para sempre a história do clube.

UMA VIAGEM NO TEMPO

Remontar o passado não é fácil, trata-se de uma história repleta de detalhes. E o LANCE! contou com a ajuda de um especialista para isso. A reportagem encontrou-se com o pesquisador José Ezequiel de Oliveira Filho no Bar Dissidenti, que tem o Palmeiras como temática e fica praticamente em frente ao Allianz Parque. Entre pôsteres de ídolos e uma enorme pintura do antigo Stadium Palestra Itália, as conversas reconstruindo o passado fluíram de forma natural. Ezequiel é, ao lado de Fernando Razzo Galuppo, autor do livro "Parque dos Sonhos", lançado em 2016. A obra é uma bíblia da história do Parque Antarctica. Ezequiel viu seu primeiro jogo no estádio em 1965, aos nove anos. O Palmeiras goleou o Santos por 5 a 0. Foi a primeira de muitas alegrias no local.

O PARQUE DO FUTEBOL

O verde do Palmeiras hoje dá o tom na frente dos bares da Rua Palestra Itália, antiga Rua Turiassú. Em 1917, no entanto, o verde que dominava o local era o da natureza. A área abrigava o Parque da Antarctica desde 1902, e antes era o local da primeira fábrica da empresa. O parque era de propriedade da Companhia Antarctica Paulista, fundada em 1885. Um ano após surgir, a empresa inaugurou naquele terreno uma indústria para a fabricação de gelo e preparação de presuntos. Em 1888, a Antarctica voltou-se para a fabricação de bebidas e daí em diante o negócio prosperou muito. Em fevereiro de 1902, a empresa abriu para o público o espaço de 300 mil metros quadrados onde funcionava a cervejaria, ali construindo um parque com bosques, brinquedos para as crianças e um restaurante. A cidade tinha poucos parques e o local rapidamente fez sucesso, apesar de naquele tempo estar em uma região que ainda era distante do centro. Vale destacar que São Paulo cresceu tanto de lá para cá, que hoje a área citada faz parte do centro expandido da cidade.

No Parque Antarctica, entre espaços para piquenique e pistas de atletismo, foi criado um campo de futebol, esporte que estava sendo jogado em São Paulo desde 1895 e vinha ganhando cada vez mais força. Ali, naquele gramado acompanhado por uma arquibancada de madeira, foi disputado o primeiro jogo de um campeonato no Brasil. No dia 3 de maio de 1902, o Mackenzie College derrotou o Sport Club Germânia (atual Esporte Clube Pinheiros) por 2 a 1, na abertura do recém-criado Campeonato Paulista. O Germânia, clube de origem alemã, fez o primeiro contrato de arrendamento do campo junto à cervejaria, já em 1902, e tornou-se mandante no local até 1916, quando diminuiu suas atividades sociais e esportivas por conta da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), tendo que desfazer o contrato com a Antarctica.

O Parque Antarctica, com sua capacidade para até 15 mil espectadores (somando arquibancada e outros espaços), era um dos principais palcos do futebol paulista, e não ficou muito tempo sem um clube. Ainda em 1916, o America Football Club (clube paulista fundado pelo ex-jogador Belfort Duarte, que tinha esse nome em homenagem ao América-RJ) firmou contrato com a cervejaria. Porém, após um ano de dificuldades financeiras, o América passou a sublocar o espaço para outros times. Foi assim que a Societá Sportiva Palestra Itália e o Parque Antarctica cruzaram seus destinos. No contrato entre América e Palestra, firmado em 1917, ficou acertado que o clube de Belfort Duarte usaria a estrutura às terças, quintas, sábados e domingos, enquanto o Palestra usaria o local nos mesmos dias, porém na parte da tarde, para treinos e jogos.

O LOCAL PERFEITO

Ter uma casa própria para que o Palestra Itália se desenvolvesse era um desejo desde o início do clube. No ano da fundação, 1914, a primeira opção surgiu em um terreno doado pela prefeitura, a Chácara Vila Clementino, mas a ideia não avançou. A partir de dezembro de 1914, o Verdão ficou sediado no campo da Rua Major Maragliano, 54, na Vila Mariana. No entanto, o terreno acidentado do local dificultava a realização de treinos e jogos - o campo ganhou o apelido de "barranco" dos palestrinos. Até 1917, o clube avaliou diversas possibilidades de mudança, inclusive com uma tentativa frustrada de um terreno às margens do Rio Pinheiros. Nada dava certo... Mas, quando tudo parecia perdido, veio a crise no América FC e a possibilidade de jogar no Parque Antarctica, um lugar muito querido pela colônia italiana, que fazia grandes festas no local.

Assim veio o grande dia: 21 de abril de 1917. Pela primeira rodada do Campeonato Paulista, o Palestra Itália enfrentou o Internacional-SP no Parque Antarctica. O rival, fundado em 1899, foi o primeiro a sucumbir no estádio, mesmo sendo mais antigo. O Palestra goleou impiedosamente por 5 a 1.

A primeira campanha no Parque Antarctica foi empolgante e o fator casa fez a diferença. O Palestra, que disputava o Campeonato Paulista apenas pela segunda vez, acabou na segunda colocação, atrás apenas do Paulistano, que faturou o seu quinto título paulista e era uma potência do futebol na época.

"Nós jogamos como inquilinos em 1917, mas sempre pensando grande, planejando adquirir o campo. Em pouco tempo, a colônia se movimentou para angariar fundos pela compra", destacou o pesquisador José Ezequiel.

'A LOUCURA DO SÉCULO'

O Parque Antarctica tinha se mostrado como o lugar perfeito para o Palestra crescer. Relatos dizem que, em uma reunião no clube, surgiu um grito geral: "O Parque Antarctica para o Palestra!". Em julho de 1918, foi organizada uma Comissão Pró-Estádio, que deu início às conversas com a Companhia Antarctica Paulista para comprar grande parte do parque. A ideia alviverde, arrojada, custava um valor altíssimo. A Antarctica pediu 500 contos de reis, uma fortuna. Essa quantia era superior a 30 boas residências na cidade.

"É como se fosse comprar o Parque do Ibirapuera hoje", comparou Ezequiel.

A conversa avançou, mas além da quantia, a Antarctica exigiu também que o América FC abrisse mão de seu contrato de locação. Porém, Belfort Duarte, presidente do América, não estava em São Paulo. Com uma séria doença pulmonar, ele tinha ido para Itatiaia (RJ) se recuperar. Em busca do sim de Belfort, o Palestra enviou o diretor Vasco Stella Farinello para a missão no Rio. Foram 12 horas de trem e cinco horas a cavalo até o rancho de Belfort. Em troca do acordo, Farinello prometeu que o Palestra iria ajudar Belfort Duarte a inscrever o América na APEA (Associação Paulista de Esportes Atléticos), para que o clube pudesse disputar o Campeonato Paulista. No fim, Farinello voltou exausto para São Paulo, mas com a notícia que todos os palestrinos desejavam.

Como arrendatário, o Palestra mandou os seus jogos no Parque Antártica até abril de 1920. Os números provam a superioridade do time no local mesmo antes de se tornar o proprietário: entre 1917 e abril de 1920, foram 22 jogos, 14 vitórias, quatro empates e só quatro derrotas, com 56 gols feitos e 29 sofridos. Finalmente, em 27 de abril de 1920, era chegado o dia de comprar o parque.

As condições de parcelamento não foram muito favoráveis: uma entrada de 250 contos de réis e mais duas parcelas de 125 contos - uma vencendo em dezembro de 1921 e a outra, em dezembro de 1922. Quase todo o dinheiro envolvido veio do suor dos torcedores palestrinos - alguns com poucas posses, outros com muitas. Um nome fundamental neste processo foi o empresário italiano Francisco Matarazzo. O cheque da entrada foi assinado pelas Indústrias Matarazzo, que financiaram parte desta etapa. Posteriormente, o Palestra conseguiu pagar a segunda parcela, mas depois entrou em crise financeira e novamente recebeu suporte do Conde Matarazzo, que comprou uma parte do Parque Antarctica (onde hoje fica o Bourbon Shopping) por 187 contos de reis, possibilitando o clube a fazer o pagamento da última parcela para a Antarctica.

O episódio da compra do terreno, de tão corajoso que foi, ficou popularmente conhecido como "A Loucura do Século" após ser batizado deste jeito pelo historiador Gino Restelli, em texto de 1959 que contava detalhes da aquisição.

"O Palestra cresceu isso aqui na força de sua gente, principalmente dos anônimos. O (Francisco) Matarazzo teve o seu papel, como grande empresário da cidade, mas muita gente foi importante. O Palestra vendeu cartelas, passando pelos sócios, para comprar o Parque Antarctica. Dando um pulo no tempo, quando o Palmeiras construiu a Academia de Futebol, em 1991, aconteceu movimentação parecida e eu mesmo comprei seis sacos de cimento. Essa coletividade é uma característica do clube", disse José Ezequiel.

Finalmente, o sonho do estádio próprio estava realizado em sua plenitude. Mas o Palmeiras sempre foi um clube de querer cada vez mais... Menotti Falchi, presidente do Palestra no período da compra do Parque, declarou ainda em 1920, ao jornal "Fanfulla", que o clube já mirava ter um estádio moderno - o Parque Antarctica tinha só uma arquibancada de madeira e um barranco era utilizado como arquibancada (com cobrança de ingressos) na lateral oposta.

"Clubes menores possuem um campo. Um estádio moderno é o desejo de todo palestrino", destacou Menotti Falchi, na declaração ao jornal "Fanfulla".