Camisa (quase) única e quarto para as 'filhas': colecionar é mais que hobby

Um sábado ensolarado, e as ruas estreitas do Beco do Batman, na zona oeste de São Paulo, não poderiam estar de outro jeito, se não apinhadas de gente. Além dos frequentadores habituais, um mar colorido de uniformes de times se misturava ao mosaico de grafites nas paredes.

Não se tratava de um bloco temático às vésperas do Carnaval. Mas sim da segunda edição do Fut Fest, um encontro de colecionadores de camisas de times de futebol que ocorreu no último sábado (15), em um dos bares da região boêmia da capital paulista.

A feira pretendia fomentar a compra, venda e troca de camisas de time. As peças tão valiosas para os torcedores há décadas saíram dos limites das arquibancadas e ganharam o universo da moda, a ponto de virar artigo fashion até para quem não é tão ligado em futebol.

E os negócios, de fato, ocorreram aos montes. Além dos colecionadores credenciados no evento, muitos outros chegavam com bolsas e mochilas que eram abertas ali mesmo no meio da rua para fazer vendas ou trocas.

Relíquia (quase) exclusiva de algoz do Flamengo

Além do viés comercial, o evento também tinha um ar de museu, com camisas que se tornaram verdadeiras relíquias pelas histórias que carregam.

É assim que voltamos para o ano de 2014. Enquanto o Brasil fervia em preparativos para a Copa do Mundo, o pequeno Tanabi ousava — ou ao menos pretendia — fazer história. O clube do interior paulista anunciava Salvador Cabañas como contratação bombástica para a disputa da quarta divisão estadual.

O paraguaio, que foi algoz do Flamengo na Libertadores de 2008, retornou ao futebol quatro anos depois de levar um tiro na cabeça em uma boate na Cidade do México. A passagem, porém, durou bem menos do que se esperava. Cabañas atuou em apenas três jogos. Vestiu, portanto, apenas três camisas, que hoje viraram relíquias. Uma delas está com o clube; outra faz parte do acervo do jogador; e a terceira estava à venda no encontro de colecionadores.

Camisa de Cabañas no Tanabi pertence ao acervo de Artur Souza
Camisa de Cabañas no Tanabi pertence ao acervo de Artur Souza Imagem: UOL
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A histórica — e quase única — camisa de Cabañas no Tanabi pertence ao acervo de Artur Souza, dono da Di.Gordo. O colecionador recebeu a peça como contrapartida em um negócio que ele fez na cidade de Araras (SP). Na hora da negociação, ele nem sabia da relíquia que chegava em suas mãos.

Também não sabia da história da camisa [quando a recebi]. Eu fui a fundo, pesquisei. Ele fez apenas três jogos. E o Tanabi fez este modelo de camisa só para os três jogos. A assinatura dele comprova que é uma camisa de jogo que passou pelas mãos dele. Artur Souza

Um andarilho das camisas de futebol

A Fut Fest juntou uma verdadeira comunidade de aficionados por camisas de futebol, recebendo pessoas de outros países que também quiseram fazer parte da festa. É o caso do argentino Jonathan Calcagno, dono de um plantel de mais de 800 camisas, que veio de Buenos Aires e dormiu no aeroporto só para participar do evento.

Jonathan Calcagno com camisa do Almagro
Jonathan Calcagno com camisa do Almagro Imagem: UOL

O colecionador, que também é professor de educação física do primário, criou na paixão por camisas históricas um verdadeiro estilo de vida: ele faz parte de eventos na Argentina, Chile, México, Brasil e em breve vai para o Peru expor sua coleção.

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Entre as tantas variedades de peças que fazem parte de trocas comerciais ou por outras relíquias, algumas não saem de casa por nada, especialmente quando se trata de seu time de coração, o Almagro, clube da segunda divisão do Campeonato Argentino, pelo qual já fez loucuras para conseguir camisas.

Uma vez estava no meio de um aniversário de família e vi que postaram uma camisa, era em torno de duas da manhã. Eu precisava encontrar o vendedor em um bairro perigoso perto de Buenos Aires, chamado Fuerte Apache, inclusive foi onde Carlitos Tevez nasceu. Minha esposa e meu irmão pediram para eu não ir, mas às três e pouco da manhã eu já estava lá. Graças a Deus deu tudo certo, e voltei pra casa com a camisa. Jonathan Calcagno

Jonathan faz sucesso entre os alunos com a sua coleção, instigando neles curiosidades e contando um pouco das histórias envolvendo cada uma delas. "Ano passado, fizemos um desafio. Durante 335 dias, eu usei uma camisa diferente por dia e contava para eles alguma história relacionada a ela. Eles adoraram", conta.

Colecionando para conquistar

A paixão por camisas de futebol de Bianca Goes começou com um simples objetivo: "Quando pequena, eu tinha muitas camisas do São Paulo, aí toda vez que ganhava uma nova, dava a minha antiga para convencer alguma menina a se tornar são paulina". Ela conseguiu "converter" duas amigas assim. "E nós usávamos as camisas para jogar futsal, para viver aquilo juntas", conta

"Depois que fiquei adulta, comecei a procurar essas camisas que eu tinha dado, para ter alguns modelos de volta. E assim comecei a colecionar. Hoje devo ter por volta de 240 camisas, a maioria é do São Paulo, mas tenho de outros times também, só não dos meus rivais paulistas", diz.

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Bianca Goes tem cerca de 240 camisas, a maioria é do São Paulo
Bianca Goes tem cerca de 240 camisas, a maioria é do São Paulo Imagem: Arquivo pessoal

Apesar da paixão pelo São Paulo ter sido o principal motivo para começar a colecionar, a peça mais cara de sua coleção nem é de futebol. "Eu tenho uma jaqueta do Chicago Bulls que encontrei num brechó dos Estados Unidos. Como foi em dólar, acabei pagando em torno de 800 reais. É uma jaqueta puffer, com bordados. Ela até tem um defeito no zipper, mas é uma relíquia, Chicago Bulls é um clássico, né? Não tinha como passar", diz.

'Tenho um quarto só para as minhas filhas, as camisas'

Dono de uma coleção de mais de 800 camisas, que variam entre Corinthians, relíquias da Europa e clássicas do Ronaldo Fenômeno, o empresário Rafael Teixeira tem um quarto em sua casa apenas para as camisas.

À espera de seu segundo filho, ele brinca: "Lá em casa tem três quartos, um é meu e da minha esposa, outro dos meus filhos, e o terceiro das minhas filhas, as camisas".

"Elas ficam todas num quarto, porque se não tem onde colocar, você acaba não curtindo, porque não tem espaço, aí vai fazendo menos sentido e você precisa vender, então por isso tenho um lugar só pra elas", diz.

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Uma das mais valiosas de seu acervo, não tem um valor exatamente financeiro.

Em 2008, minha avó foi para Portugal e eu pedi uma camisa do Cristiano Ronaldo. Em vez de ela me trazer uma camisa de futebol dele, ela me trouxe uma estampada com fotos do Cristiano. Claro que não era o que eu estava esperando. Na época não dei muita bola, mas aí fui começando a colecionar e ela acabou virando uma das mais simbólicas da minha coleção, pela minha avó ter comprado pra mim e pelo valor sentimental que ela carrega. Rafael Teixeira

Já a sua camisa mais cara é uma peça raríssima: a camisa de goleiro da Dinamarca de 1992. Rafael pode ser uma das poucas pessoas, se não a única no Brasil, que conta com essa camisa. "O Schemeichel já era um ídolo de infância meu. Eu nunca tinha visto essa peça vendendo no Brasil, aí vi um colecionador dinamarquês anunciando. Na época saiu uns R$ 2.000, R$ 2.500", diz.

Renato Croda e sua família
Renato Croda e sua família Imagem: UOL

Palmeiras é negócio de família

Se estamos falando em fazer de tudo para conseguir uma camisa do seu time do coração, o comerciante Renato Croda sabe bem como é. A conexão dele com o Palmeiras é tão grande, que já chegou a parar uma pessoa na rua para negociar uma camisa depois de avistá-la.

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"Uma vez estava andando para o trabalho e vi uma pessoa em situação de rua com uma camisa do Palmeiras de 1994. Perguntei a ele sobre a camisa e ele disse que toparia fazer uma troca. Fomos almoçar e troquei com ele por outras camisas polos novas. Ele disse 'Para mim não tem muito valor, mas se pra você tem, podemos fazer uma troca'", relembra.

Esse é mais um item especial da sua coleção de camisas históricas do Palmeiras. Entre todas, a que ele considera mais especial é uma do goleiro Veloso de 1989. "Foi um tio já falecido que me deu de presente. Já me pararam na rua e ofereceram até quatro mil reais pela camisa, mas essa eu não troco por nada, quero que fique pro meu filho para ele dar para os filhos dele e assim vai", conta.

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