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Idioma: O que explica tantos mal-entendidos com técnicos portugueses?

Abel Ferreira, do Palmeiras, e Vitor Pereira, do Corinthians, se cumprimentam em jogo no Allianz Parque - WILIAN OLIVEIRA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Abel Ferreira, do Palmeiras, e Vitor Pereira, do Corinthians, se cumprimentam em jogo no Allianz Parque Imagem: WILIAN OLIVEIRA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Do UOL, em São Paulo

06/10/2022 04h00

Na última segunda-feira (3), Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, entrou em mais uma polêmica ao responder de modo grosseiro pergunta feita pelo jornalista Guilherme Gonçalves, da TV Litoral News, após a vitória por 3 a 1 sobre o Botafogo, no Rio. Posteriormente, o treinador português se desculpou ao alegar que não havia entendido a pergunta.

Portugueses e brasileiros, não raro, passam por situações desse tipo. E, de acordo com estudiosos da língua portuguesa, a explicação está no fato de os dois povos há tempos não falarem exatamente o mesmo idioma. Tanto do ponto de vista gramatical quanto lógico.

A tese da existência de um português do Brasil e um português de Portugal é defendida por uma corrente influente de linguistas —pessoas que estudam a linguagem verbal, a gramática e a evolução dos idiomas.

"O uso da língua, sua pragmática, já se tornou muito diferente", explicou ao UOL Esporte Marcelo Módolo, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP) e um dos defensores da tese.

Essa ruptura entre o idioma falado na Europa e a que utilizamos no Brasil ajuda a explicar, por exemplo, os diversos e recorrentes desentendimentos entre os técnicos portugueses, a imprensa e outros profissionais do meio do futebol brasileiro.

Em muitos destes casos treinadores como Jorge Jesus (ex-Flamengo), Abel Ferreira, Vítor Pereira (Corinthians) e Luís Castro (Botafogo), entre outros, foram apontados como rudes.

Muito além das palavras

As diferenças entre o português daqui e o de Além-Mar não se limitam às palavras, que têm significados diferentes em cada país. Estão também nas construções gramaticais. "E a maneira como se constrói uma frase, ao longo do tempo, molda também o jeito de pensar das pessoas", diz o professor Marcelo Módolo.

"Ao fazer uma prova aqui, tive de ler os enunciados muitas vezes, porque a forma como eles constroem as frases é muito particular e não fica clara para nós", diz Rafael Bellatini, jornalista que estuda em Portugal para se tornar técnico de futebol e cumpre estágio em uma escolinha do Sporting.

"Para eles é um pouco mais fácil entender os brasileiros porque eles assistem às novelas do Brasil desde os anos 1980. Mas eu aqui, por exemplo, quando assisto a um telejornal, tenho que prestar muita atenção, e não só por causa das palavras", conta ele.

Os portugueses são, por costume, literais no uso das palavras e por isso suas frases não deixam subentendidos. Já no Brasil é comum que se use expressões nas quais cabem interpretações.

Quando o repórter coloca que ao ver o Palmeiras com dez jogadores "não sentiu qualquer tipo de alteração, o jogo se manteve como estava", pela lógica brasileira era um elogio. Mas na interpretação literal, comum aos portugueses, era como se o técnico não tivesse feito nada pelo time diante da dificuldade de ter um expulso.

Para o professor da Universidade de Brasília e Doutor em Linguística pela USP Marcos Bagno, embora o tempo tenha acentuado a diferenciação, o português brasileiro já nasce diferente do lusitano.

"A miscigenação no Brasil foi muito mais intensa e, evidentemente, a miscigenação linguística também. O português foi língua minoritária no Brasil durante todo o período colonial. Falava-se como língua geral o tupi", exemplificou ele, em entrevista ao Jornal Opção, de Brasília.

Sinceridade e agressividade aparecem com frequência

jj - Henry Romero/Reuters - Henry Romero/Reuters
Jorge Jesus, campeão da Libertadores em 2019
Imagem: Henry Romero/Reuters

Além da questão lógica, a sinceridade e a agressividade portuguesas, para os parâmetros brasileiros, têm a ver, em grande parte, com o contexto da sociedade local.

"Existem diferenças na maneira de usar a língua que configuram uma sintaxe diferente, uma maneira de pensar e usar a língua diferentes. Por isso, os portugueses, às vezes, parecem grossos, e dão aquelas declarações que se tornam estereotipadas", acrescenta o professor Marcelo Módolo. "Algo visto como grosseria aqui pode ser visto como comum em Portugal", diz.

"Isso, de parecer estarmos bravos ao falar, além de falar a cantar e rápido, já me disseram que fazemos", disse à reportagem Fátima Ferreira, 59, uma portuguesa da região de Penafiel, onde nasceu Abel Ferreira, que já está há dez anos no Brasil.

Embora lide com público diariamente, pois é proprietária de um restaurante típico, chamado "O Português", ela mantém ainda forte sotaque e não mudou o seu jeito de falar.

"Eu não mudo mais. Os jovens sim, se chegam cedo, acredito que possam mudar", diz ela.

Em Portugal, por conta do sucesso dos youtubers, como Lucas Netto, há uma forte campanha dos pais para que haja restrições, pois as crianças estão aprendendo a falar "brasileiro", em detrimento do português local.

"E por que não haveria de andar?"

O professor Módolo relata um episódio ocorrido no Brasil com uma respeitada professora portuguesa. De passagem pelo Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, uma amiga disse a ela a frase: "O Papa rezou uma missa aqui, e um homem andou". Como resposta, recebeu: "Oras, e por que um homem não haveria de andar?".

O exemplo mostra uma estrutura de fala completamente compreensível para o brasileiro: a missa rezada pelo Papa fez com que um homem voltasse a andar. Mas, no português de Portugal, as palavras combinadas do modo acima geram outra interpretação.

"Um exemplo como 'minha bermuda está lavando' nunca aconteceria em Portugal, não faz parte da gramática da língua deles. É um exemplo mínimo, trouxe aqui apenas um fenômeno, que é a questão da ordem das palavras", exemplificou o professor Marcos Bagno.

"A maneira como os portugueses se expressam tem também a ver com a realidade de mundo deles", explica Marcelo Módolo, citando a declaração de Vitor Pereira, técnico do Corinthians, sobre ter muito dinheiro no banco quando indagado se teria medo de perder o emprego.

De partida, a expressão "ter medo" tem um peso diferente no português falado na Europa. Por aqui, em sentido figurado, corresponde a "estar preocupado ou receoso". Em Portugal, seu sentido é literal. Com se VP estivesse verdadeiramente amedrontado.

"Na sociedade portuguesa, dizer quanto dinheiro a pessoa tem no banco não tem o mesmo peso que tem no Brasil, socialmente falando", explica o professor Marcel Módolo. "É assim também com a agressividade. No trato diário entre os portugueses, há maneiras de falar que são aceitas, mas que no Brasil passam do ponto", diz.

"Quando vi a resposta do VP sobre o dinheiro no banco, na hora, pensei: 'É uma resposta portuguesa'. Para eles, isso não é ser mal-educado, nem esnobe. É um modo português de responder", acrescenta Rafael Belattini.

Do mesmo modo, quando Abel Ferreira fala abertamente sobre o que Cuca errou quando não venceu o Palmeiras com dois jogadores a mais, ou que o Atlético-GO de Jorginho ataca bem, mas se defende mal, ele não quer ofender os treinadores. Está apenas usando a língua portuguesa de acordo com o código de conduta e lógica de Portugal: uma pergunta direta demanda uma resposta direta.

O professor também explica que, mesmo ao término de seu contrato, Abel Ferreira ainda não vai se comunicar como um brasileiro, apesar de entender melhor o contexto local de uso do idioma. "Você fala como aprende até os 18 anos. Depois disso, não muda mais", diz ele.

Há sim, contudo, a tendência de que tanto Vitor Pereira quanto Abel e Luis Castro acabem amainando um pouco o jeito de se comunicar. "Alguém precisa dar um toque neles também", brinca o professor.