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'SPFC me faz passar toda a raiva que fiz a torcida passar', diz ex-zagueiro

Zagueiro Jean, do São Paulo, tenta passar por Romualdo e Juari, do Gama, durante paritida no estádio Mané Garrincha, pela Copa João Havelange, em 2000 - Sérgio Lima/Folhapress/Sérgio Lima/Folhapress
Zagueiro Jean, do São Paulo, tenta passar por Romualdo e Juari, do Gama, durante paritida no estádio Mané Garrincha, pela Copa João Havelange, em 2000 Imagem: Sérgio Lima/Folhapress/Sérgio Lima/Folhapress

Augusto Zaupa e Vanderlei Lima

Do UOL, em São Paulo

23/04/2022 04h00

Não é muito comum para um jogador em atividade, tampouco para alguém que já tenha pendurado as chuteiras ser sincero diante do gravador e admitir publicamente que fez uma torcida "passar raiva" por causa de suas falhas. Hoje aposentado, o ex-zagueiro Jean, de 42 anos, não só assumiu os seus erros como declarou que ele, mesmo, tem perdido a paciência ao assistir o atual time do São Paulo, 8º colocado do Brasileirão, em ação.

"Até hoje eu assisto a todos os jogos do São Paulo. Tenho passado muita raiva, eu e o meu pai, o seu João. Mas eu acho que toda a raiva que eu fiz o torcedor do São Paulo passar, os caras estão fazendo eu passar hoje. Puta que pariu, o meu pai também sofre demais. Quando toma o primeiro gol, ele já sobe, não fica na sala, vai para o quarto dele e não assiste mais", disse aos risos o ex-defensor ao UOL Esporte.

Revelado pelo São Paulo no fim da década de 1990, na geração que ainda contava com Kaká, Júlio Baptista e Fábio Simplício, Jean atuou na equipe profissional do clube do Morumbi de 1999 a 2003 e conquistou três títulos — Paulistão (2000), Rio-São Paulo (2001) e o Supercampeonato Paulista (2002). Ele, no entanto, sabe que não deixou saudades na torcida. Era constante alvo de críticas que vinham das arquibancadas.

"[Quero] pedir desculpas para a torcida do São Paulo. Eu vou me dar nota 6. Mas por não por ter dado um título de expressão naquela época, uma geração que era muito boa mas que acabou não sendo tão vitoriosa. Em nome dessa galera toda que passou, todos tiveram uma carreira brilhante fora do São Paulo: o [Fábio] Simplício jogou na Roma, Maldonado teve uma carreira linda, Júlio Baptista jogou no Real Madrid, Kaká melhor do mundo, Luiz Fabiano no Sevilla, Denílson... Todos que saíram do São Paulo tiveram uma carreira incrível. Não era uma geração de jogadores fracos", desabafou.

Apesar de estar na bronca com o atual time, depois de lutar contra o rebaixamento no Brasileirão de 2021 e ter perdido o título do Paulistão 2022 para o rival Palmeiras, Jean tem esperanças de dias melhores graça à parceria de Rogério Ceni e Muricy Ramalho. Mas, para ele, os voos mais altos ainda não serão na atual temporada.

"Quem viveu esse período glorioso do São Paulo [de 2006 a 2008] tem que estar no clube para mostrar a esses jogadores novos que chegam a grandeza do São Paulo. O São Paulo perdeu a identidade durante um bom tempo. Até pelas contratações. Eu falava e tinha a impressão que os caras não têm noção do que é o São Paulo, o tamanho do São Paulo", analisou.

"Com o Rogério e com o Muricy Ramalho lá dentro, eu acho que isso é mais difícil de acontecer porque eles passam o que é o São Paulo, dizem que determinado jogador não cabe, que este tipo de trabalho não funciona. Isso pesa muito. Com eles permanecendo e a torcida dando voto de confiança para o Rogério, vamos começar a voltar a nossa realidade. Não vai ser agora porque tem concorrentes que estão num patamar muito alto, Flamengo, Atlético-MG e Palmeiras. Logo logo a gente vai voltar a estar entre os três, quatro clubes do Brasil", completou.

Jean x Donizete - ALEX SILVA/ESTADÃO CONTEÚDO/AE - ALEX SILVA/ESTADÃO CONTEÚDO/AE
Jean (dir.) e o volante Adriano (esq.) cercam o atacante Donizete em jogo do São Paulo contra o Vasco, no Morumbi, em 2003
Imagem: ALEX SILVA/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

Confira outros trechos da entrevista com Jean:

Carreira vitoriosa como... gandula

"Decidi que eu queria ir pra São Paulo fazer um teste no São Paulo [Jean é natural de Feira de Santana-BA]. O São Paulo estava vivendo aquele momento de 92, 93, bicampeão da Libertadores, bi Mundial. Eu sempre fui são-paulino e eu queria de qualquer jeito jogar no São Paulo. Bati lá no Morumbi, pedi para fazer uma avaliação, aquele peneirão. Fui aprovado e acabei ficando dez anos no clube. No período em que fui gandula, o São Paulo estava super bem. Na final da Libertadores de 1994 [contra o Vélez Sarsfield-ARG], eu estava atrás do gol na disputa de pênaltis. O meu currículo como gandula é bem melhor do que como jogador. Foram vários brasileiros, Libertadores, Supercopa, Paulista... Ave Maria, o meu currículo é gigantesco como gandula, ninguém tem não. (risos)"

Primeiro tênis de marca graças a Zetti

"Uma vez, quando passei ao lado da arquibancada, um torcedor que estava com as filhas me pediu para pegar alguma coisa de algum jogador. O Zetti entrava [no campo] com boné e uma toalhinha. Eu pedi ao Zetti a toalha e, quando entreguei a toalha para o cara, ele pegou e me deu R$ 5. Toda vez que tinha jogo, eu pegava alguma coisa do Zetti ou de qualquer um e conseguia um dinheiro. Consegui juntar uma grana para comprar o meu primeiro tênis de marca, um da Mizuno. Era o tênis da moda na época. Eu comprei graças ao Zetti (risos)."

Alvo de ataques dos são-paulinos

"Depois daquele jogo contra o Corinthians, na final do paulista de 2003, a torcida me xingava muito. Passei quatro meses no Brasileiro terríveis. Se eu fosse torcedor e estivesse na arquibancada, eu iria xingar também. Eu tinha falhado na final, não foi uma falha grotesca, mas uma chance que a gente tinha de ganhar. Não foi o erro que valia o título [perdido para o rival após derrota por 3 a 2], mas zagueiro não pode falhar em final. Hoje eu penso assim. Os caras me xingavam em todos os jogos, qualquer um que falhasse a culpa era minha. O Kaká não jogou a final porque estava machucado, mas a torcida não acreditou e vaiou eu e o Oswaldo de Oliveira, que era o treinador. Pegaram a gente para Cristo."

Redenção contra o próprio Corinthians

"Sempre tive muita noção do que eu representei, do que eu fui. Tinha o sonho de jogar no São Paulo, nem pensava em dinheiro. Pude realizar alguns sonhos, um deles foi num jogo contra o Corinthians, mesmo com a torcida do São Paulo pegando no meu pé. Eu lembro que, em 91, se não me engano, o [ex-zagueiro] Antônio Carlos fez um gol de cabeça e foi correr para o símbolo do São Paulo para comemorar, beijar o símbolo. Eu tinha um sonho de fazer aquilo ali, e contra o Corinthians eu fiz o gol da vitória [por 2 a 1, pelo Brasileirão de 2003] e fui lá no símbolo e beijei o símbolo do São Paulo. A coisa acalmou um pouco, mas os caras arrancavam o meu couro."

Defender o maior rival em 2009

"Joguei a base inteira contra o Corinthians. Não que você seja educado a não gostar do Corinthians, é que é natural você odiar o seu rival. Eu tinha muita raiva do Corinthians, ainda mais que a gente tinha perdido grandes jogos. No dia em que eu entrei no Parque São Jorge para assinar o meu contrato, foi uma das piores sensações da minha vida. Lembrando que eu tenho muito respeito pelo Corinthians, passei a respeitar mais ainda depois que eu joguei lá, a maneira como os torcedores lidam com o clube, você passa a admirar. A paixão que o torcedor tem pelo Corinthians é uma coisa fora do comum, nunca vi na vida, é um negócio absurdo. A gente ganhou o Paulista de 2009 [e a Copa do Brasil], tive a oportunidade de jogar com o Ronaldo Fenômeno, foi uma experiência maravilhosa. Foi bom conhecer o inimigo, as entranhas do inimigo, as trincheiras. Respeito muito o Corinthians, mas tenho um amor imenso pelo São Paulo, é o clube que eu sou apaixonado."

Sofreu racismo na Rússia

"Quando eu cheguei na Rússia [em 2003, para defender Saturn] era muito forte essa coisa de racismo. Se eu fizer um livro do que eu passei na Rússia, é best seller. Comecei a namorar uma russa que, inclusive, eu casei e tive um filho com ela. Depois nos divorciamos. Passei muita coisa. Os torcedores no estádio imitando macaco o tempo inteiro, segurança dentro de supermercado me seguia. Eu com o carrinho de compra, e ele me seguia. Chegava no restaurante vazio, e o gerente falava que o restaurante estava todo reservado, táxi que não parava porque via que era negro. No total, eu fiquei cinco anos na Rússia. Dois no Saturn, um no Dínamo Moscou e depois Rubin Kazan e FC Moscou."

Mas tem carinho pela Rússia

"A Rússia é um país maravilhoso, uma culinária top. É um povo difícil, mas depois que você entende a cultura deles você passa a gostar. Tem esse imbecil do [presidente Vladimir] Putin, mas é um povo bom. Eu gostei muito de ter jogado na Rússia, foi uma experiência fantástica para mim."

Guerra entre Rússia e Ucrânia

"Nunca estive na Ucrânia, mas eu falo com alguns amigos russos e brasileiros que vivem na Rússia. Eles estão muito por fora do que está acontecendo, a imagem que estão passando na Rússia é totalmente diferente. Vendem que eles que são os bonzinhos, o Putin. Você sabe que é um governo autoritário, vindo da antiga União Soviética. Eles vendem [a história] como se a Ucrânia estivesse querendo problema com eles, e que eles são os santinhos, que estão lá tentando resolver, tentado combater o nazismo. Enfim, os russos vão acreditando. O Putin tem uma aceitação muito grande lá."

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