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Agressão a árbitra é novo ponto baixo no futebol que trata mal as mulheres

Técnico dá cabeçada em auxiliar em jogo do Campeonato Capixaba - Reprodução
Técnico dá cabeçada em auxiliar em jogo do Campeonato Capixaba Imagem: Reprodução

Beatriz Cesarini, Pedro Lopes e Talyta Vespa

Do UOL, em Sãp Paulo

14/04/2022 04h00

O futebol atingiu no último domingo um novo ponto baixo: a árbitra-assistente Marcielly Motta foi agredida com uma cabeçada pelo técnico do Desportivo Ferroviária, Rafael Soriano, enquanto apitava a partida do time contra o Nova Venécia. O episódio bárbaro é só a ponta do iceberg em um esporte que parece insistir em ser um ambiente hostil para mulheres. Além da violência física, Soriano ainda acusou a bandeira de ter inventado a agressão - capturada em vídeo - "por ser mulher", chegando a ameaçar levá-la à delegacia.

Apesar da participação cada vez maior de mulheres no futebol, tanto nas arquibancadas como nas diversas profissões que cercam o esporte, jogadoras, árbitras, jornalistas e torcedoras continuam enfrentando misoginia, violência e resistência para afirmar seus lugares. A agressão sofrida por Marcielly mostra que, apesar dos avanços, o futebol permanece um ambiente hostil para todas elas.

"Praticamente em todo jogo falam coisas baixas pelo fato de eu ser mulher, tenho até vergonha de repetir. Além do assédio, de torcida a jogador. Mas esse tipo de agressão foi a primeira vez, e foi a que mais me assustou", disse Marcielly em entrevista ao UOL.

Soriano foi demitido pelo clube após a agressão, e suspenso preventivamente pelo Tribunal de Justiça Desportiva do Espírito Santo. Ele ainda será julgado de forma definitiva, e pode pegar uma suspensão de pelo menos 180 dias.

Violência e hostilidade das cabines de imprensa às arquibancadas

Se a agressão a uma mulher dentro do campo de futebol é um chocante fundo de poço, a hostilidade que cerca as várias profissionais no esporte não é novidade. Uma das classes mais atingidas é a imprensa feminina. Os ataques vêm de todos os lados, desde torcedores até (e principalmente) os próprios colegas de profissão. Em março de 2018, um grupo de 50 profissionais lançou o manifesto #DeixaElaTrabalhar, contra o machismo e assédio nos estádios, redações, onde quer que aconteçam.

Quatro anos depois, pouca coisa mudou. Os casos de assédio e violência contra as mulheres são ainda comuns. Repórter da BandNews FM, Alinne Fanelli relatou momentos de desconforto ao ser assediada por um profissional de outra rádio.

"Em um domingo de março, eu cheguei para fazer o jogo do São Paulo, no Morumbi. Esse profissional chegou me abraçando já, e eu nunca tive intimidade com ele. Falou: 'Nossa, você é muito linda, quem é você?'. Fiquei sem graça e fui saindo. Falei que era Alinne e ele repetiu: 'É muito linda'. Tinha outras pessoas no ambiente e ninguém falou nada, mesmo percebendo que estava desconfortável. Fui para a minha cabine", contou.

"Algumas semanas depois, aconteceu de novo. Cheguei com o meu colega para pegar os equipamentos na cabine. Ele estava lá, mas em outra cabine. Ele me olhou de cima para baixo. Ouvi: 'Nossa, essa menina é muito linda'. E não parava de olhar. Tinha um companheiro dele conversando, e ele nem prestava atenção no papo. Ficou falando: "É a repórter mais linda que tem. Logo logo ela vai estar na TV'. Pelos meus atributos físicos, sabe? Fiquei muito desconfortável. Quando a gente ouve esses relatos, a gente acha que vai agir de um jeito, mas quando acontece, a gente não sabe como reagir", concluiu.

Em entrevista recente ao UOL Esporte, a narradora Natália Lara relatou outro tipo de hostilidade contra a mulher no ambiente esportivo. A radialista faz parte de um movimento da televisão que começou há pouco tempo: a inclusão de mulheres nas narrações esportivas. Desde que iniciou sua jornada, ela recebe mensagens com xingamentos e ameaças diariamente.

A presença dessas profissionais em um espaço predominantemente masculino incomodou aqueles que estavam acostumados com homens no comando dos microfones. Certo dia, Natália ouviu de um torcedor que sua narração "era um crime".

"Esse tipo de coisa no dia a dia, sinceramente, cansa. Não é todo dia que eu estou bem para lidar com isso. Tem dia que eu bloqueio e viro a página, mas tem dias que é bem duro. Principalmente quando são ataques coordenados, em que, a cada dois segundos, recebe uma enxurrada de coisa. É bastante cansativo e desgastante. Já tive que bloquear comentários de rede social para não ter que lidar com isso. Eu não faço a menor ideia de quantas contas bloqueadas eu tenho", relatou Natália Lara.

As mulheres também sofrem fora das cabines de imprensa, nas arquibancadas. Em novembro do ano passado, Débora Cotta, torcedora do Atlético-MG foi agarrada e beijada à força por um homem durante o confronto contra o Corinthians, no estádio do Mineirão. Em entrevista ao UOL Esporte em novembro do ano passado, Débora disse ter conversado com outras vítimas de episódios de violência.

"Uma moça me contou que teve a mão mordida. O cara queria ver a foto de capa do celular dela, pois era uma foto de biquíni. Ela não deixou, mas o cara mordeu a mão dela para conseguir pegar o celular", contou.

Machismo afeta também as poucas mulheres em posições diretivas

É sinuosa e longa a escada que mulheres precisam subir para alcançar posições de direção no futebol. Mesmo quando alcançadas, essas posições não se traduzem em imunidade às várias formas de agressão. Um exemplo é a conselheira do Corinthians Analu Thomé, que, em novembro do ano passado, expôs uma mensagem recebida no grupo de conselheiros do clube: "Vai arrumar um tanque de roupa para se divertir", dizia o texto, enviado pelo conselheiro Mané da Carne.

Ela denunciou a fala e outras agressões sofridas no grupo ao Conselho de Ética do clube, mas, mesmo com o registro por escrito, não foi suficiente. Um mês depois, o caso foi arquivado. O órgão se declarou sem competência para tratar do assunto, optando pelo arquivamento da denúncia.

Analu foi eleita para o conselho trienal do Corinthians em 2021. A eleição resultou em um recorde na Pasta: dez mulheres entre 200 homens foram eleitas. O número, que atinge a marca de 5%, sinaliza que os tempos estão mudando e que o futebol será cada vez mais ocupado por mulheres. Há muitos passos, entretanto, para tornar o esporte mais popular do país um ambiente profissional para o gênero feminino.

"Nós, como mulheres, já sabemos: para ser ouvida, tem que falar uma, duas, três, quatro vezes, levantar o tom. Eu vejo isso já nos grupos dos quais participo. Se eu falo alguma coisa, muitos não ligam. Aí, um outro conselheiro fala uma besteira qualquer e todo mundo curte, sabe? É muito mais difícil de ser ouvida", diz Analu.

O machismo afeta também as mulheres que chegam às posições de poder mais altas. Leila Pereira, presidente do Palmeiras, falou sobre o assunto em entrevista ao jornal O Globo no último dia 8 de março.

"Como o futebol é um meio muito masculino, as pessoas se sentem incomodadas por uma mulher que está se sobressaindo tanto. São críticas muito ridículas. Primeiro, é pesadíssimo com relação à contratação de jogadores. O Palmeiras tem tido uma trajetória extremamente vitoriosa. As pessoas criticavam muito os departamentos de marketing e comunicação. Entrei e fiz várias alterações. As mesmas pessoas criticam agora as alterações que eu fiz para melhorar. Eu aceito as críticas e sugestões, mas a decisão é minha. Acho que aí é que entra o preconceito. Como pode uma mulher bater firme e dizer: 'Eu respeito a sua opinião, mas a caneta é minha'?", disse.

Esporte tenta acolher homens condenados por crimes contra mulheres

Em dois casos conhecidos no Brasil, clubes fizeram movimentos para acolher homens já condenados judicialmente por crimes graves contra mulheres. Bruno de Souza, o goleiro Bruno, foi condenado em março de 2013 a 22 anos de prisão pelo feminicídio da modelo Eliza Samudio. Menos de um ano depois, era anunciado como contratação pelo Montes Claros.

Entre 2014 e 2021, enquanto cumpria sua pena, Bruno passou por Boa Esporte, Poços de Caldas, Rio Branco e Atlético Carioca. Os clubes pelos quais atuou sempre foram alvos de protestos nas redes sociais.

O Santos repatriou Robinho e assinou contato com o atacante em outubro de 2020. Naquele momento, Robinho já carregava uma condenação em primeira instância por estupro na Itália. O alvinegro viria a suspender o acordo uma semana depois, sob pressão da opinião pública. O jogador foi condenado em dezembro do mesmo ano em segunda instância, e de forma definitiva, sem recurso, em janeiro deste ano.

Falar sobre machismo é importante, mas elas querem falar sobre futebol

Os relatos, é claro, são importantes para a luta das mulheres no ambiente esportivo. As mulheres que atuam no futebol, entretanto, já não aguentam mais falar sobre o tema. Elas querem apenas trabalhar e falar de futebol, como fazem os colegas de profissão do sexo masculino.

"Eu estava dando uma entrevista para o L'Équipe, da França, sobre machismo. E terminou a entrevista e eu perguntei: 'Você está no Brasil fazendo entrevistas com jornalistas, me fala um pouco sobre seu trabalho?'. Ele: 'Não. Na realidade, eu vim fazer um especial sobre o Neymar, mas eu aproveitei para falar sobre essa pauta, que é um assunto importante, está latente na França também'. Eu falei: 'Poxa, você vai entrevistar alguma mulher para falar sobre o Neymar?'. Ele ficou um pouco sem graça. Eu falei: 'Você veio até mim para falar sobre machismo, sexismo, os problemas que eu vivo na minha carreira, mas não quer saber minha opinião sobre o Neymar?'", contou Bárbara Coelho em entrevista recente ao UOL

"Acho que é isso. A gente não pode ser setorista de gênero. A gente não é. Eu não quero ser e não acho que minhas amigas tenham que passar por isso, as pessoas que trabalham comigo. Acho que a gente está aqui para falar sobre tudo, inclusive sobre esse tema. Então, espero estar em todos os ambientes porque foi para isso que eu trabalhei. Não só eu, mas nós mulheres todas", concluiu.