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Como três times viraram campeões gaúchos mais de 100 anos após o título

Taças entregues a campeões honoríficos do Campeonato Gaúcho - Divulgação/FGF
Taças entregues a campeões honoríficos do Campeonato Gaúcho Imagem: Divulgação/FGF

Marinho Saldanha

Do UOL, em Porto Alegre

22/01/2022 04h00

O campeonato gaúcho de 2020, assim como todas as competições esportivas, foi interrompido por causa da pandemia de covid-19. Aos poucos, conforme o conhecimento sobre o novo coronavírus e os métodos para evitar a contaminação foram aumentando, o torneio foi retomado e concluído. O procedimento, porém, foi outro em 1918, quando a pandemia de gripe espanhola impediu os jogos. Só depois de 103 anos é que três times foram premiados como campeões.

Seria a primeira edição do Gauchão. Naquele ano, as equipes iniciavam a disputa em uma fase regionalizada e três avançavam para brigar pelo título de campeão do Rio Grande do Sul.

Os classificados, e campeões regionais, foram Brasil de Pelotas (região Sul), 14 de Julho de Livramento (Fronteira) e Cruzeiro-RS (região Metropolitana). Porém, o triangular decisivo jamais foi realizado.

Em campo, estariam atletas notáveis da época. Entre eles, Ismael Alvariza, do Brasil de Pelotas, primeiro jogador gaúcho convocado para seleção brasileira, em 1920. Cypriano Nunes da Silveira, conhecido como Castelhano, do 14 de Julho, também convocado em 1920 para seleção. E Aníbal Médici Machado, conhecido como Aníbal Candiota, do Cruzeiro-RS, que foi titular da seleção brasileira no Sul-Americano de 1921.

A pandemia de gripe espanhola assolou o planeta. Entre 1918 e 1920, o vírus infectou aproximadamente 500 milhões de pessoas no mundo. Estima-se que ao menos 50 milhões de pessoas tenham morrido. Não há estatísticas oficiais da época a respeito.

No Rio Grande do Sul, a gripe espanhola chegou em meados de outubro de 1918. Em dezembro, jornais da época já relatavam 4 mil mortos. Em três meses o número de óbitos subiu para 12 mil, também em estatísticas não oficiais.

"Foram adotadas medidas de isolamento, remédios foram especulados como cura, houve corrida às farmácias, recomendavam-se medidas de higiene, usavam-se máscaras em ambientes públicos, proibiram-se cultos religiosos e velórios. Houve desabastecimento de alguns produtos, foi necessário fazer tabelamento de preços e restrição da quantidade de produtos a adquirir. Hospitais e postos de saúde foram improvisados", relata texto de Gislene Monticelli, professora e pesquisadora do Delfos - Espaço de Documentação e Memória Cultural, do Instituto de Cultura da PUCRS.

Não era possível manter o campeonato. O torneio, então, foi cancelado e acabou "esquecido". Tanto que o "primeiro Gauchão" foi definido como a edição de 1919, cujo título ficou com o Brasil de Pelotas.

Cem anos após o "campeonato que não terminou", em 2018, Cruzeiro-RS, Brasil de Pelotas e 14 de Julho enviaram à Federação Gaúcha de Futebol um pedido para serem reconhecidos como campeões. O trâmite foi avaliado mas não caminhou como esperavam os clubes.

Em 2020, com a pandemia de novo coronavírus repetindo a preocupação de 100 anos atrás, uma nova solicitação foi encaminhada, remetendo ao pedido já feito pelos clubes.

Um ano se passou até que, em dezembro de 2021, a Federação Gaúcha de Futebol tornou o trio "campeão honorífico" do Rio Grande do Sul. A distinção é citada como uma homenagem, mas, em nota, a FGF explica que não torna as três equipes campeãs oficiais do Gauchão.

"O título honorífico se trata de uma homenagem aos clubes e não se aplica aos mesmos o título oficial de campeão estadual daquele ano", diz trecho da manifestação oficial da FGF.

Aos três foram enviados troféus alusivos à época, com o símbolo da Federação Rio-Grandense de Desportos [antigo nome da entidade].

"É um reconhecimento ao que esses clubes passaram. Vivemos algo semelhante com a pandemia de Covid-19 e agora podemos entender melhor essas dificuldades", disse o presidente da FGF, Luciano Hocsman, na ocasião.

Com 103 anos de atraso [de 1918 a 2021], Brasil de Pelotas, Cruzeiro-RS e 14 de Julho de Livramento puderam gritar: "É campeão!", de um torneio que nunca acabou por causa de uma pandemia.

Orgulho para três clubes

A reportagem do UOL Esporte colheu depoimentos dos três clubes sobre o título reconhecido mais de 100 anos depois. Todos mostraram orgulho imenso pelo feito tardio.

"Por mais que tenha mais de 100 anos, seja histórico, é um reconhecimento para a cidade, para a paixão do torcedor de Livramento e a história do 14 de Julho. É um titulo que valoriza todo mundo que torce pelo clube e o futebol do interior. Ficamos muito felizes. A motivação e a alegria que a cidade teve não têm como mensurar. O título é mais do que merecido e a comunidade merecia este reconhecimento", disse Manoel Severo, gestor da escola de futebol do 14 de Julho.

"Para nós é um orgulho enorme. Como primeiro campeão gaúcho, em 1919, o que já mostrava a força do Brasil desde cedo. E ficar sabendo que em 1918 o Brasil já era campeão da região e representaria a zona Sul nos enche de alegria. Sabemos que não é um título gaúcho como os demais, mas representa muito em função da pandemia, e da Federação reconhecer o que houve naquela época, tendo a empatia com os atletas que foram impedidos de realizar o sonho de serem campeões. A FGF se colocou ao lado dos clubes em tudo que precisamos neste período [de pandemia] e relembrou quem começou essa história. Foi o que seria o primeiro campeonato gaúcho e é interessante demais como trataram isso. O Brasil ficou muito feliz, e com certeza vamos guardar este troféu num local especial na sala de troféus do clube", afirmou Arthur Lannes, vice de futebol do Brasil de Pelotas.

"É um trabalho que começamos a desenvolver há dois anos para o reconhecimento. O Cruzeiro é um clube centenário, que já foi um dos maiores do Rio Grande do Sul. Foi pioneiro em viagens internacionais, e não teve a oportunidade efetivamente de terminar aquele campeonato por causa da gripe espanhola. Então, a gente entende que o reconhecimento do título traz de volta ao clube as raízes de grandeza, as grandes disputas, os campeonatos. O clube ganhou o torneio da região metropolitana, com Grêmio e Internacional. É merecedor de ter este feito reconhecido. Apesar do Brasil de Pelotas ter conquistado o primeiro Campeonato Gaúcho, em 1919, o reconhecimento ao Cruzeiro traz de volta aquele espírito de pioneirismo para a torcida, faz com que a torcida veja que o clube sempre foi grande e que poderá se tornar novamente um time deste porte. Esse reconhecimento coloca um pouco de justiça no que aconteceu há mais de 100 anos", disse Gerson Finkler, presidente do Cruzeiro-RS.

O Campeonato Gaúcho de 2022 começa na próxima quarta-feira. Os primeiros jogos da competição serão entre Inter e Juventude e União Frederiquense e Novo Hamburgo, ambos às 16h (de Brasília).