Topo

Socos, ônibus capotado e Jango: a odisseia de palmeirenses no Uruguai em 68

Servílio cumprimenta jogador do Estudiantes na final da Taça Libertadores de 1968 - Arquivo/Estadão
Servílio cumprimenta jogador do Estudiantes na final da Taça Libertadores de 1968 Imagem: Arquivo/Estadão

Diego Iwata Lima e Leo Burlá

Do UOL, em Montevidéu (URU)

24/11/2021 04h00

Na relação cada vez mais próxima entre o Palmeiras e a Copa Libertadores, um dos primeiros encontros entre as partes, e dos mais íntimos, também aconteceu no Estádio Centenário, em Montevidéu, onde Palmeiras e Flamengo decidem a edição de 2021 no sábado (27).

A terceira partida final da Libertadores de 1968, o jogo desempate previsto no regulamento da época, foi realizada em solo charrúa entre Palmeiras e Estudiantes (ARG). Os argentinos ganharam por 2 a 1 em La Plata, e os brasileiros venceram por 3 a 1 no Pacaembu.

A derrota por 2 a 0 na partida derradeira foi o prenúncio de uma sequência de confusões e percalços envolvendo torcedores que se aventuraram ao país vizinho para presenciar o jogo. O UOL Esporte ouviu os aventureiros, que se envolveram em brigas e em um capotamento de ônibus, passando até por oferta de ajuda de funcionários do ex-presidente João Goulart, o Jango.

"Eram uns 10 mil"

Luiz Gonzaga Belluzzo, 79, ex-presidente do Palmeiras, e seu irmão Luiz Augusto, 77, ex-vice presidente em um dos mandatos de Mustafá Contursi, foram dois dos muitos alviverdes presentes ao estádio na época.

"Havia muitos palmeirenses, eu acredito que uns 10 mil. Não chegou a ficar lotado, mas eu diria que havia tantos argentinos quanto brasileiros. E os uruguaios torceram para o Palmeiras, é claro", contou Luiz Augusto ao UOL Esporte.

Luiz Gonzaga, recém-casado, teve ajuda financeira de amigos e da então esposa Ana para vir ao Uruguai de avião. "O salário de professor da Unicamp, naquela época, não bancava confortavelmente uma viagem internacional, mesmo para o Uruguai", contou Luiz Gonzaga.

Já Luiz Augusto se aventurou numa viagem de mais de um dia inteiro de ônibus, numa comitiva de quatro veículos cheios - ao menos no trajeto de ida. "Chegamos em cima da hora do jogo, fomos direto para o estádio", conta.

Em um dos ônibus estava também o ex-delegado Marcos Gama, 76, um dos organizadores da comitiva.

"Inicialmente, a final ia ser em Santiago, no Chile. Seria inviável ir. Mas quando mudou para Montevidéu, ficou possível", diz Gama, fundador do coletivo de esquerda palmeirense "Porcomunas".

"Naquela época, não havia as organizadas, mas formamos uma comissão e conseguimos alugar quatro ônibus", relata.

A derrota por 2 a 0 —gols de "La Bruja" Verón, pai do ex-jogador e atual presidente do Estudiantes, Juan Sebastian Verón— foi frustrante, mas alguns dos episódios que se seguiram tornariam a aventura ainda mais inesquecível.

Socos, polícia montada e um delegado que não gostava de argentinos

Luiz Gonzaga conta que não demorou muito para que os argentinos começassem a provocar. Com o amigo Paschoal Junior e seu pai, o Paschoal Gagliardi, Gonzaga levava uma bandeira do Palmeiras ao Centenário - um torcedor do Estudiantes tentou roubá-la.

"Mas o Sr. Paschoal era um cara muito grande e forte, e não deixamos que ele levasse a bandeira", contou ele, que apesar de não ser tão alto também é conhecido por não fugir de confusões, conforme será atestado à frente neste texto.

No estádio, durante o jogo, não houve muitos problemas, nem mesmo após o apito final. Do lado de fora, entretanto, um ônibus lotado de argentinos passou junto a Belluzo e aos dois Paschoais. Um deles, o pai, deu um soco na lataria, amassando o veículo.

"Eles ficaram loucos, e queriam descer do ônibus de qualquer modo para brigar. A confusão cresceu, a gente ali tentando se defender", conta Luiz Gonzaga. Não tardou para a polícia uruguaia chegar, montada a cavalo. E Luiz Gonzaga e os Gagliardi, além dos argentinos, foram para a delegacia.

"Ficamos lá por um tempo, e quando chegou nossa vez de prestar depoimento, um delegado que parecia estar com muito sono, foi bem direto", conta Belluzzo: "Vocês bateram nos argentinos?", foi a pergunta dele. E como a resposta foi positiva, ele apenas disse "Pois fizeram muito bem", antes de liberá-los, revela Belluzzo, entre risos.

Gama seguiu um rumo totalmente diferente, e teve um encontro surpreendentemente amistoso com os argentinos. "Terminado o jogo, um grupo veio festejar com a gente, ofereceram vinho", relembra-se.

Capotamento e ajuda de funcionários de Jango

Se Luiz Gonzaga tinha problemas com a polícia, Luiz Augusto tinha questões automobilísticas com que se preocupar. Na volta ao Brasil, um dos ônibus da comitiva sofreu um capotamento ainda antes de deixar o Uruguai.

"Umas quatro ou cinco pessoas se feriram com certa gravidade", conta Luiz Augusto. "Quem nos ajudou foram funcionários de uma fazenda da região", contou.

"Saindo de Montevidéu, encontramos muita neblina, havia trechos de terra, e acabou havendo esse acidente. Um ônibus capotou na estrada, havia mulheres também na viagem. Se não me engano, uma delas chegou a perder a orelha", conta Marcos Gama. Depois de resgatados, os palmeirenses foram levados para a cidade de Maldonado. "Ficamos na praça, meio acampados", conta Gama.

De repente, um carro parou e um homem de terno desceu falando português. Explicou que era funcionário de uma fazenda da região, oferecendo hospedagem. E dizendo que o dono da fazenda, que não estava na propriedade, era o ex-presidente João Goulart, segundo relata Gama.

"Era 1968, em plena Ditadura. A gente debateu a questão e concluímos que era muito perigoso. Alguém iria acabar sabendo e a gente ficou com medo de nem conseguir entrar no Brasil depois", diz. Assim mesmo, os funcionários trouxeram alguns alimentos para os torcedores.

A volta foi muito desconfortável. O ônibus acidentado não foi consertado rapidamente, e os passageiros do veículo que capotou tiveram que ser espalhados pelos outros ônibus.

"Fazíamos um rodízio. Eram uns 40 passageiros, conta Augusto. "À medida que as pessoas iam se cansando, a gente se revezava", relembra-se. E assim foi, até o desembarque na baixada da Rua Consolação, próximo à Avenida São Luís, de onde o comboio havia partido.