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Longe da Copa América, Brasília vive "futebol raiz" e quem manda é Zé Love

Zé Love comemora gol do Brasiliense com companheiros de time - Marinho Saldanha/UOL
Zé Love comemora gol do Brasiliense com companheiros de time Imagem: Marinho Saldanha/UOL

Marinho Saldanha

Do UOL, em Brasília (DF)

23/06/2021 04h00

Aproximadamente 20 quilômetros e menos de 24 horas separaram duas realidades distantes nas noites de futebol em Brasília. Na sexta-feira passada, o Mané Garrincha foi palco para Messi, com suas arrancadas, chutes e passes na vitória da Argentina sobre o Uruguai pela Copa América. No dia seguinte, o Serejão recebeu Brasiliense e Nova Mutum pela Série D nacional. E no "futebol raiz" do Distrito Federal, quem manda é Zé Love.

Brasília é a única sede da Copa América sem times na Série A. O imponente Mané Garrincha, com cadeiras confortáveis, iluminação de primeiro mundo e um gramado muito bom —ainda que não 100% agradável aos astros de fora— é a antítese do futebol local.

No esporte "de verdade" do Distrito Federal, o estádio é acanhado, pichado, sem cadeiras ou mesmo pintura, com o mato querendo nascer entre as arquibancadas sem uso por causa da pandemia de novo coronavírus. E é esta diferença que a reportagem do UOL Esporte foi ver de perto no jogo válido pela terceira rodada do grupo E da Quarta Divisão brasileira

Logo na chegada ao estádio já se nota tamanha discrepância. Não há qualquer indicação de entrada. Os portões fechados, uma rua lateral sem pavimentação, as bilheterias pichadas, um circo e alguns carros estacionados nas proximidades. Este é o entorno do Serejão, na cidade-satélite de Taguatinga. Um tipo diferente de isolamente quando comparado ao entorno dos estádios usados para abrigar, de última hora, a competição de seleções mais importante do continente.

A identificação da entrada para imprensa vem apenas ao perceber-se que há dois ônibus estacionados em frente a um portão. São os veículos das delegações, que não ficam em garagens ou encurtam percurso aos vestiários. Ficam na rua mesmo, esperando o jogo acabar.

Entrada do estádio Serejão, em Taguatinga, no Distrito Federal - Marinho Saldanha/UOL - Marinho Saldanha/UOL
Imagem: Marinho Saldanha/UOL

E nada é simples no futebol raiz. A entrada do estádio é por um lado, onde ficam os vestiários, mas as cabines de imprensa e os reservados são do outro. Ou seja, tanto os profissionais de mídia quanto os atletas precisam cruzar o campo todo a cada fim de tempo ou entrada.

O placar não é eletrônico, não há sistema de som informando trocas ou internet nas cabines. Não há lanchonete funcionando, água sendo vendida, nada. Mas cadeiras e mesas para os jornalistas, uma condição comum em estádios de clubes menores.

O placar, aliás, está lá, mas é manual. A cada gol o número é alterado para que quem acompanha — atualmente apenas profissionais de imprensa.

Placar utilizado no estádio Serejão em Brasiliense x Nova Mutum pela Série D - Marinho Saldanha/UOL - Marinho Saldanha/UOL
Imagem: Marinho Saldanha/UOL

O gramado é outro detalhe importante. Repleto de falhas e com ao menos dois tipos de grama dividindo espaços, o piso impede que a bola role corretamente, aumenta as divididas, condiciona o jogo.

Zé Love é o dono da festa

Zé Love comemora gol pelo Brasiliense pela Série D - Marinho Saldanha/UOL - Marinho Saldanha/UOL
Imagem: Marinho Saldanha/UOL

Se Messi sobrou em campo no clássico do Rio da Prata, o "dono da festa" no futebol brasiliense é Zé Love. O ex-santista comanda não apenas o ataque do Brasiliense, mas todas as ações em campo. Você ouve mais a voz dele do que a do técnico Vilson Taddei no jogo.

Brigando com árbitro, discutindo com rivais, reclamando, gesticulando, Zé Love está por todos os lados do campo. Não demorou para sair um gol dele, abrindo o marcador. Em seguida o Nova Mutum, do Mato Grosso, clube profissional há pouco mais de dois anos, empatou.

Zé Love reclama com árbitro em jogo do Brasiliense pela Série D - Marinho Saldanha/UOL - Marinho Saldanha/UOL
Imagem: Marinho Saldanha/UOL

No segundo tempo, o ritmo de Love diminuiu. Aos 33 anos, ele já não é o menino do cabelo colorido que fazia parceria com Neymar no Santos. Mas ainda assim ele cavou um pênalti e colocou na rede de novo. O dono da festa saiu em seguida e viu de fora sua equipe vencer por 3 a 1.

Pouco? Zé Love marcou seu 15º gol em 17 partidas oficiais nesta temporada. Na passada foram 24 em 36 jogos.

Distante da elite há 16 anos

Não há clube de Brasília na elite de futebol há 16 anos. O último foi o próprio Brasiliense, rebaixado para Série B após acabar o Brasileiro de 2005 em último. Desde 2010, o DF também não tem clube na B e, desde 2013, nem mesmo na C. Gama e Brasiliense, as potencias do Distrito Federal, jogam a Série D.

Jornalista esportivo há 29 anos no Distrito Federal, atualmente na Rádio DF 10, Fábio Santos acredita que há diversos fatores para o distanciamento do futebol de Brasília para a a elite. O principal deles é a falta de gestão.

"A prova disso está nas duas principais representações candangas, Brasiliense e Gama, ambas na quarta divisão, que é a curva para o fim do mundo no futebol. O Brasiliense é um brinquedo caro, de luxo, nas mãos de seu dono, Luis Estevão. Quando estava livre, ora se comportava como torcedor, ora como presidente e, muitas vezes como técnico, entrando e saindo dos vestiários, supostamente para dar 'dicas' de como se fazer. Nada de gestão... A outra equipe, o Gama, encontrou presidentes que se utilizaram do clube para engordar contas bancárias. Dilapidaram todo o patrimônio do clube que vive hoje como barriga de aluguel, fazendo parcerias obscuras que ninguém sabe ao certo onde vai dar", disse ao UOL Esporte.

Rener Lopes, do site Esportes Brasília, concorda que a falta de planejamento afeta o futebol local, e pontua também a ausência de incentivos do governo.

"Falta investimento ao futebol de Brasília. Os dois times não têm um incentivo governamental financeiro. O Brasiliense é o time com patrocínio próprio, e o Gama vive pedindo apoio a particulares, não tem financiamento do Estado. O futebol de Brasília não tem investimento", opinou.

"Os times não foram muito bem montados. O Gama teve muitas parcerias, e acabou naufragando em algumas delas. Umas foram felizes, outras não. Falta investimento e compromisso dos gestores em montar bons elencos, saber administrar e quitar seus pagamentos. Todo trabalhador precisa receber seu salário. É um conjunto de fatores, mas os mais importantes são falta de planejamento e gestão, e investimento governamental", completou.

É um cenário pouco animador, que deixa, por ora, os clubes locais e veteranos como Zé Love bem mais distantes dos 20km que separam o Serejão do Mané Garrincha.