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Covid: riscos com a Copa América são maiores que de outras competições?

Divulgação/Conmebol
Imagem: Divulgação/Conmebol

Brunno Carvalho e Igor Siqueira

Do UOL, em São Paulo e Rio de Janeiro

02/06/2021 04h00

O anúncio de que a Copa América seria disputada no Brasil incitou o debate sobre os riscos de sediar um evento internacional em um período com média diária de 1800 mortes pela covid-19 no país. Mas se tem futebol rolando pelos torneios nacionais e continentais de clubes, é possível atribuir à Copa América uma ameaça maior à saúde da população brasileira?

Esse dilema esteve presente no debate que envolveu a classe política. Ao dizer que inicialmente o estado de São Paulo estaria aberto para receber o torneio, o governador João Doria (PSDB) chamou de "falta de bom senso" as críticas ao torneio de seleções, enquanto as disputas do Brasileirão, da Copa do Brasil e da Libertadores seguem normalmente.

"Nós temos em São Paulo autorizados o campeonato local, temos o campeonato sul-americano, temos três divisões de campeonatos mais jovens, tem a segunda divisão do Paulista, temos a Copa do Brasil e o Brasileirão. Se tivermos que ter uma atitude coerente, temos que parar o futebol em São Paulo. Agora, criminalizar especificamente a Copa América porque veio fruto de um entendimento do negacionista de Brasília é nós perdermos o bom senso", declarou Doria, referindo-se ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) como "negacionista de Brasília".

São Paulo acabou ficando fora da lista de sedes da Copa América, que acontecerá em Mato Grosso, Rio de Janeiro, Goiás e Distrito Federal. Em nota oficial, João Doria mudou de posição em relação à sua declaração inicial.

O UOL Esporte ouviu alguns especialistas, como Celso Ferreira Ramos Filho, infectologista e professor titular de Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para ele, o problema da realização do torneio entre seleções é maior do ponto de vista da imagem a respeito da pandemia.

"A Copa América no Brasil não é muito diferente do Brasileirão. Ou seja, vai ter circulação de pessoas entre várias cidades do país. São pessoas que vêm de fora, em teoria podem trazer novas variantes, mas isso não é uma grande preocupação para mim, até porque vão ser testados. Do ponto de vista epidemiológico, é um problema um pouco menor. Do ponto de vista pedagógico, dá uma sensação de normalidade que não existe", explica.

Ramos Filho chegou a ser convidado para fazer parte da elaboração do "Jogo Seguro", protocolo criado pela Federação de Futebol de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj) para o Carioca 2020, mas depois deixou as discussões junto aos clubes.

"Deveríamos estar tendo Campeonato Brasileiro? Essa é a pergunta", prossegue ele. "É uma população menor, um grupo de pessoas que pode ser mais controlado, não acho que tenha evidência de que os jogos tenham trazido aumento de casos, a não ser os casos entre os próprios jogadores. Mas isso, provavelmente, não é dentro de campo, nem nos locais de treino. É no ambiente social que os jogadores vivem. Acho que você pode ter o Brasileiro dentro dessas condições, limitações. O número de pessoas viajando pelo Brasileiro é menor do que por outros motivos. Se São Paulo estivesse bloqueada, em um lockdown que nunca fizemos no Brasil, aí seria diferente", disse.

A CBF, inclusive, defende essa tese de que não há contágio em campo.

O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que, de fato, terá a Copa América em seu "quintal", veio a público dizer que fez uma série de exigências, como "um sistema estilo bolha, que protegesse atletas, arbitragem, comissão técnica, imprensa e todos os envolvidos direta e indiretamente com o processo".

"Não podemos politizar esse assunto de Copa América. Porque estamos tendo Campeonato Brasileiro, Sul-Americana, Libertadores e Eliminatórias. Tivemos estaduais. Qual a diferença se protocolos até mais rígidos de segurança serão tomados? É preciso pensar na saúde e ter coerência", disse o governador goiano.

A infectologista Raquel Stucchi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), também não enxerga a Copa América como um problema muito maior do que os enfrentados com a realização dos outros campeonatos. Ainda assim, ela considerada o torneio no país "um absurdo total" e defende que todas as competições deveriam ser paralisadas nos Estados com situações mais críticas.

"Eu sou da opinião que, no momento, principalmente nas regiões em que você tem os indicadores que corresponderiam até uma cor vermelha ou preta [na situação de gravidade da pandemia], esses jogos não deveriam ocorrer. Se você falar para mim que o protocolo funciona... se o protocolo da CBF funcionasse, a gente não teria tantos times com jogadores, comissão técnica e tudo com covid. Se não funciona porque não respeitam, porque não é seguro... o fato é que não funciona", explica.

A Conmebol anunciou que cada delegação contaria com no máximo 65 pessoas. Ao todo, 10 seleções disputarão o torneio continental. "Serão 65 pessoas por delegação, então são 585 pessoas a mais vindo de países diferentes, além das 65 da seleção brasileira, o que faz com que você possa ter aqui um intercâmbio de vírus circulando. Além deles, você tem as pessoas envolvidas na organização dos jogos: funcionários dos estádios, jornalistas brasileiros e estrangeiros que vão cobrir e os torcedores. Mesmo dizendo que não haverá torcida, não ter torcida não significa que você não terá encontro de torcedores. Nós vimos isso na final entre São Paulo e Palmeiras", prossegue.

Depois de o São Paulo vencer o Palmeiras por 2 a 0 e conquistar o título do Campeonato Paulista, a torcida tricolor se aglomerou nas imediações do estádio do Morumbi para comemorar com os jogadores o fim da fila de oito anos sem conquistas.

O médico infectologista Guilherme Spaziani, do Hospital Emílio Ribas, uma das principais trincheiras do combate à doença em São Paulo, também coloca ressalvas sobre os protocolos que serão utilizados para a realização da Copa América no Brasil. "É difícil a gente falar em um torneio seguro. Seguro seria um torneio que não existisse. Mas acho que pode contribuir para que minimize o risco. Mas a gente sabe que esse risco vai existir e vai ser um risco com grande potencial".

As aglomerações são apontadas pelo infectologista Renato Grinbaum, professor da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid) e também consultor da SBI, como o principal problema da realização da Copa América no país. Caso os protocolos sejam respeitados, o torneio seria um problema menor, na visão dele.

"Não tendo torcida e com estádios vazios, é um problema menor. Óbvio que tem uma questão política para dizer se é prioridade ou não para o país. Agora, se houver qualquer forma de aglomeração, de torcedores, jornalistas e pessoas trabalhando, isso não é bem-vindo. O número não é grande, mas vai depender da estrutura que estará montada. A questão não é o número de pessoas. Mas a aglomeração."

Vacina ajuda, mas não é certeza de mais segurança para a Copa América

Durante as negociações com o governo brasileiro, a Conmebol prometeu manter a exigência de os integrantes das delegações que vierem ao país para a disputa da Copa América sejam vacinados. Até o momento, seis seleções já tomaram pelo menos a primeira dose da Coronavac, enviadas pelo laboratório chinês Sinovac. A seleção brasileira e outras três ainda não tomaram nenhuma dose, a 11 dias do início da competição.

"A primeira dose não é suficiente. Deveria ser com as duas completas", ressalta Renato Grinbaum. "Mas mesmo com a segunda, a vacina não diminui tanto o número de casos. Mas o que é importante é que ela reduz o número de casos graves. Só com a primeira dose, você pode ter pessoas entrando no país transmitindo o vírus".

A opinião é compartilhada por Raquel Stucchi. Na visão dela, as seleções deveriam ser imunizadas com a vacina da Johnson & Johnson/Janssen, que necessita apenas de uma dose, dado a falta de tempo para aplicar as duas doses dos outros imunizantes. Além disso, corre o risco de um dos imunizados estar com o vírus durante a aplicação e transmiti-lo nos dias posteriores.

"O grande problema que eu vejo também é se há garantia e fiscalização para que esses atletas realmente fiquem numa bolha. É difícil você ver esse tipo de disciplina nos jogadores de futebol latino-americanos. Os nossos não têm. O Arboleda estava em uma balada no final de semana".

O zagueiro Robert Arboleda, do São Paulo, e o atacante David Neres, do Ajax (HOL), foram flagrados pela Polícia Civil em uma festa na zona leste de São Paulo na madrugada de quinta (27) para sexta (28). O time do Morumbi multou o defensor e o afastou do jogo contra o Fluminense, pelo Campeonato Brasileiro, que aconteceu no último sábado (29).

Além da falta de tempo para as duas doses da vacina, o anúncio de que o Brasil receberia o evento em cima da hora também atrapalha no planejamento de uma quarentena para as pessoas que chegarão ao país. Com 11 dias para o início da competição, não seria possível um isolamento de duas semanas, considerado ideal para evitar que os visitantes ingressem ao país com o vírus.

"A gente pode trazer infectados que podem estar contaminados. Mesmo o melhor exame que a gente tem, que é o RT-PCR, tem 30% de falso negativo. Eu posso vacinar uma paciente que está transmitindo o vírus e ela vai continuar transmitindo por esse período e pode não pegar no RT-PCR. Por isso que os países todos, até quando você consegue viajar, você faz exame, mostra que é negativo e ainda fica de quarentena, porque ainda existe esse risco de transmissão. Não é diferente entre jogadores de futebol. Isso acontece, ele pode vir apesar do exame negativo, começa a jogar e pode transmitir", explica Raquel Stucchi.

Como exemplo do risco, ela lembra do caso do lateral esquerdo Yuri, da Ponte Preta, em março deste ano. Ele apresentou um resultado de exame negativo e estava assintomático. Poucas horas antes de um jogo do Campeonato Paulista, apresentou sintomas da doença. O jogador havia passado três horas dentro do ônibus com a delegação que viajou de Campinas para Ribeirão Preto, onde enfrentaria o Botafogo. Nos dias seguintes, a delegação da Ponte sofreu um surto da covid-19.

"'Ah, não, com os atletas sul-americanos será diferente'. Eu não sei por quê. A ciência não explica por que seria diferente", completa.