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Como confusão com a Globo ajudou Gaviões a fazer Carnaval histórico em 95

Desfile da escola de samba Gaviões da Fiel em 95, ano em que venceu o Carnaval de São Paulo - Maurilo Clareto/Estadão Conteúdo
Desfile da escola de samba Gaviões da Fiel em 95, ano em que venceu o Carnaval de São Paulo Imagem: Maurilo Clareto/Estadão Conteúdo

Flávio Ismerim

Do UOL, em São Paulo

14/02/2021 04h00

Depois que o Grêmio Gaviões da Fiel Torcida desfilou no dia 25 de fevereiro de 1995, o Carnaval de São Paulo não foi mais o mesmo. Cantando o enredo "Coisa Boa É Pra Sempre", de forma muito carnavalesca, a escola evocou as coisas boas da infância para comemorar os 25 anos de sua fundação.

Com a força de um samba cujo refrão está na boca de todo mundo até hoje, as arquibancadas do Anhembi viveram um dia de Pacaembu com jogo do Corinthians. Para emplacar a letra na cabeça do público, a escola de samba contou com a ajuda de uma confusão com a Globo, originada em protesto pelo contestado resultado do Carnaval do ano anterior.

Me dê a mão, me abraça
Viaja comigo pro céu
Sou gavião, levanto a taça
Com muito orgulho, pra delírio da fiel

Ao fim da leitura das notas, os Gaviões foram declarados campeões do Carnaval paulistano pela primeira vez com 293 pontos - cinco pontos a mais do que a segunda colocada, a tradicional e multicampeã Rosas de Ouro. Também foi a primeira vez em que uma escola fora do círculo das cinco grandes (Vai-Vai, Nenê de Vila Matilde, Mocidade Alegre e Camisa Verde e Branco) se sagrava campeã depois de décadas de domínio.

'Coisa Boa É Pra Sempre' - 1995

Cantado em todos os lugares

Nem só de encanto e deslumbramento na avenida vive um grande desfile. O trabalho começa muito antes. Tanto que o samba-enredo de 1995 da Gaviões tocava nas rádios do Brasil inteiro, martelava na cabeça de quem assistia a programação da TV Globo e perseguia até mesmo aqueles que assistiam outros canais de televisão.

É o próprio Ernesto Teixeira, que além de cantar era uma das lideranças administrativas da escola na época, quem conta essa história ao UOL. Como a escola gravou a vinheta da TV Globo com todos os componentes com o rosto pintado de palhaço, em referência ao protesto que a Gaviões fez no desfile das campeãs de 1994 por causa de uma confusão na apuração, a emissora pediu que a agremiação regravasse tudo.

No entanto, Ernesto tinha férias marcadas, o que atrasou a regravação. Por isso, a vinheta dos Gaviões demorou a começar a passar. O intérprete conta que, quando ela foi ao ar, a Globo precisou repor as vezes em que a vinheta não circulou.

"Nós bombamos no Carnaval. Não foi um caso pensado, mas aconteceu. Você via o Bom Dia São Paulo, Globo Esporte, Jornal Hoje, Jornal Nacional e tocava 'Me dê a mão, me abraça'", relata Ernesto.

O samba-enredo dos Gaviões da Fiel figurou durante meses entre as músicas mais pedidas da rádio Transcontinental FM. A escola tocou no Show de Calouros do SBT e até no programa Especial Sertanejo, da Record.

Ernesto diz que, para fazer o samba-enredo grudar na cabeça do pessoal da arquibancada da Gaviões, a agremiação fazia o hino ser tocado antes dos jogos e durante o intervalo das partidas do Corinthians no Pacaembu. Quem fosse ao estádio também ganharia uma guia com a letra do samba.

Brincando Carnaval

"Foi toda uma aura que eu não sei explicar. Existem coisas que não são técnicas, tem que descer uma luz na escola. Ela tinha uma luz a mais do que as outras", afirma Fabio Parra, que é mestre em Artes Visuais pela Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) e pesquisador de Carnaval.

Com assinatura de Grego, um dos maiores compositores da Gaviões e de todo o Carnaval de São Paulo, o samba mexeu com as arquibancadas e foi capaz de traduzir em palavras as imagens nostálgicas que o carnavalesco Raúl Diniz colocou na avenida. Circo, arlequins, pierrôs, colombinas, brinquedos e brincadeiras desfilavam e transportavam as pessoas para um tempo em que o Carnaval era brincado.

Para Doroty Martos, que foi madrinha de bateria da escola durante a década de 90, a chave do sucesso foi justamente a ideia de aliar a experiência que a agremiação já tinha no concurso de blocos - do qual a Gaviões foi campeã por 12 vezes entre 1976 e 1988 - com a leveza de brincar Carnaval na rua para o universo mais cheio de regras das escolas de samba.

"Nós chegamos ali, naquele lugar com regulamento mais duro e engessado, com o componente brincante. Porque apesar da seriedade, o desfile de bloco é mais solto, mais leve. Ou seja, a Gaviões desfilava trazendo a paixão e o amor ao Corinthians, a alegria dos blocos e a técnica de uma escola organizada", analisou Doroty.

Doroty Martos como madrinha de bateria no desfile de 1995 da Gaviões da Fiel - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Doroty Martos como madrinha de bateria no desfile de 1995 da Gaviões da Fiel
Imagem: Arquivo Pessoal

Outra pessoa fundamental para o desfile que concorda com essa visão é o intérprete Ernesto Teixeira, dono do microfone principal da Gaviões desde 1985.

"Foi a simbiose da torcida, da arquibancada, com a felicidade de brincar carnaval. A comissão de frente do desfile de 1995 era toda composta por homens com 1,90m de altura, todos vindos da arquibancada dos jogos do Corinthians", relembra Ernesto.

O que tem que ser resgatado é a comunicação daquele desfile. É o desfile que não era voltado para impressionar as outras, mas buscando a comunicação com o público. Não era aquela coisa do pessoal andar retinho, olhando para frente, sem interagir com a arquibancada. Era um tema que poderia ser tudo e não ser nada, mas ele foi tudo. Era um resgate das memórias da infância, do brincar o Carnaval com o Pierrô, o Arlequim e a Colombina, o beijo. Coisas que a gente tem nos blocos. Os Gaviões têm uma alma foliã que dá aula em muita escola dita tradicional. Afirma Fabio Parra.

"O que importava muito naquela época, até para uma questão de julgamento, era a criatividade. O barracão não tinha a estrutura que tem hoje. Hoje em dia é mole fazer Carnaval. Hoje você tem toda uma estrutura, você tem profissionais, você tem materiais diversos. Naquela época você tinha que inventar moda", diz o carnavalesco Raúl Diniz, que hoje mora na Espanha.

O revés de 1994

A vitória de 1995 começou a ser construída já na apuração de 1994, quando a Gaviões perdeu o título por meio ponto, a diferença mínima da época, em função de uma nota 6 dada pelo julgador Paulo Soledade no quesito Melodia.

O folclore do Carnaval paulistano conta que a nota deveria ter sido atribuída à Primeira da Aclimação, que chegava ao Grupo Especial naquele ano, mas foi dada aos Gaviões por engano do julgador. A justificativa do julgador fazia menção ao samba sobre queijos e vinhos que a escola levou para o Anhembi. O título ficou com a Rosas de Ouro, e a agremiação corintiana acabou com um segundo lugar muito contestado.

Curiosamente, o samba figura nas listas das melhores obras do gênero em São Paulo e é cantado até hoje nas arquibancadas. A confusão ficou tão engasgada que a Gaviões reeditou o enredo, que falava sobre o tabaco, 25 anos depois, em 2019.

Desfile da Gaviões da Fiel teve o tradicional gavião em dourado - Ricardo Matsukawa / UOL - Ricardo Matsukawa / UOL
Desfile da Gaviões da Fiel de 2018 teve o tradicional gavião em dourado
Imagem: Ricardo Matsukawa / UOL

Ernesto conta que a indignação com o resultado foi a mola propulsora para a vitória em 1995. "Eu comentei com o Grego [que também compôs o samba de 1994]: 'Se a gente não desfilar, a gente ainda corre o risco de ser campeão. A comoção é tão grande que a gente precisa colocar na letra do samba o anseio da Fiel de levantar a taça". E o Grego colocou: "Sou Gavião, levanto a taça com muito orgulho pra delírio da Fiel".

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