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Como guerra transformou amizade de Schalke e Borussia em grande rivalidade

Kyriakos Papadopoulos, do Schalke, ergue o pé de forma exagerada na tentativa de tirar a bola de Robert Lewandowski, do Borussia, em 2012 - AFP
Kyriakos Papadopoulos, do Schalke, ergue o pé de forma exagerada na tentativa de tirar a bola de Robert Lewandowski, do Borussia, em 2012 Imagem: AFP

Fátima Lacerda

Colaboração para o UOL, em Berlim (ALE)

24/10/2020 04h00

Um dos jogos mais atrativos, de maior simbologia e rivalidade do futebol alemão é o confronto entre o Borussia Dortmund, mundialmente famoso pela sua "Muralha Amarela", e Schalke 04, os Azuis Reais da cidadezinha de nome quase impronunciável de Gelsenkirchen. A diferença geográfica entre os clubes é de somente 35,5 km na região da Westfália — famosa pela produção de carvão para toda a Europa e a mesma que, depois da Segunda Guerra Mundial, era polo dos chamados 'Trabalhadores Convidados' (Gastarbeiter) que vinham da Turquia, Itália, e ex-Iugoslávia. Borussia Dortmund e Schalke 04 se enfrentam hoje (24), às 13h30 (de Brasília), pela quinta rodada do Alemão.

Com a mão de obra insuficiente depois da morte de muitos homens alemães na II Guerra, o governo do chanceler Konrad Adenauer criou o programa que trazia mão de obra para o país. Entre os anos de 1955 e 1973 foram 14 milhões de trabalhadores para reconstruir o país.

A ideia do gabinete do primeiro chanceler da Alemanha, depois da guerra, era que em determinado período a mão de obra voltasse ao país de origem ao fim da ajuda para reconstruir a Alemanha, mas a fatura não fechou. Os convidados decidiram ficar, criaram famílias e encontram na região suas novas referências. Os sobrenomes têm sonoridade nada alemã, mas polonesa, turca, russa, italiana.

Os Kumpel — gíria que denomina os carvoeiros — são obcecados por futebol na região-administrativa do Estado de Nordrhein-Westfalen (NRW, na sigla), a mais populosa na Alemanha e com maior tradição futebolística. Nela, habitam Borussia Dortmund, o Borussia M'Gladbach, Bayer Leverkusen e o Schalke 04.

Tempos remotos

Da perspectiva de hoje, parece até irônico que o Schalke 04 já foi o Rei do Ruhr ou Pott, como é apelidada a região. Já houve tempo em que, vitorioso, era até mesmo reverenciado pela torcida do Dortmund, com direito à assinatura no livro da prefeitura da cidade e até festividades conjuntas na Praça Borsigplatz, atualmente, solo sagrado e cativo dos Aurinegros sempre quando há um motivo para comemorar.

O destino dessas duas culturas futebolísticas esteve ainda mais amarrado com o treinador Ernst Kuzorra, que por longos anos da sua vida foi treinador do time de Gelsenkirchen. Mesmo sendo chamado pela diretoria do 04 como Conselheiro, ganhou seis títulos com o clube até mudar de lado e treinar o Dortmund na temporada 1935/46, ajudando o time a subir para a Quarta Divisão (Oberliga).

Naqueles tempos sombrios, com a Alemanha sob o nacional-socialismo de Adolf Hitler, a rivalidade entre os dois clubes não tinha o significado regado de absolutismo, que viria ocorrer anos depois. Um pulo colossal para 2020 mostra um Schalke 04 arrebatado de problemas financeiros, de elenco, de técnico e, acima de tudo, de caráter. De Azul Real nada mais sobrou: o futebol do Schalke 04 se tornou motivo de memes e muita chacota.

Antes e depois da Segunda Guerra

Artigo veiculado no portal Sportbuzzer em 2017, toma depoimento do arquivista Gerd Kolbe, um exímio conhecedor da rivalidade entre as duas equipes. "Antes da Segunda Guerra Mundial era amizade. Da perspectiva dortmundiana, até mesmo veneração. Antes da guerra iniciar, imperava uma verdade absoluta", explica Gerd e acrescenta. "Se houvesse confronto entre os dois, o Schalke ganhava". A única exceção foi em 1943.

Em sua era gloriosa, os Azuis Reais contabilizam muitos campeonatos e até mesmo participação nas finais do torneio de maior prestígio do país: a Copa da Alemanha (DFB Pokal), nos anos de 1935, 1936,1941 e 1942. Essa estatística acompanha até hoje de forma negativa devido à reputação de ter sido conivente com o regime do Nacional-Socialismo de Hitler ou, pelo menos, ter muitos simpatizantes, dentro de suas torcidas.

A virada de 180 graus que mudaria para toda a eternidade a veneração por ódio e disputa eterna sobre quem é o 'Rei do Pott' — dono do pedaço da região expressa na canção 'Die Nummer 1 im Pott, sind wir' (O número 1 da Pott, somos nós) — ocorreu num domingo, em 18 de maio de 1947, com o Schalke 04 recebendo o Dortmund, no estádio Herna Stadion.

Os dois clubes disputavam a Taça da Westfália. Era o 25° confronto, com 15.000 torcedores do Borussia apoiando o time na cidade vizinha. Com o resultado por 3 a 2 a favor do time preto e amarelo, "a dominância schalkeana havia sido rompida", declara o historiador e arquivista Gerd Kolbe. Esse rompimento foi sublinhado com a vitória, na sequência, de mais seis campeonatos da Taça Westfália. A desigualdade técnica e esportiva das duas equipes se tornara obsoleta. Agora, era de igual para igual. Olho no olho, dente por dente.

No final dos anos 70, o abismo entre os torcedores das duas equipes era intransponível. Durante a gestão sob o comando do CEO Rudi Assauer, emblemático, temperamental, mulherengo e sempre com seu charuto no canto da boca, a rivalidade entre os dois times vivenciou seu ápice. Assauer é lembrado como lenda pelos Azuis Reais como o cartão de visitas do time de Gelsenkirchen, entre 1964 e 1970. No entanto, quando ainda atuava como jogador, ele participou de 169 jogos e fez oito gols vestindo a camisa do Dortmund. Essa parte da história os torcedores do Schalke 04 preferem esquecer, colocando-a bem fundo debaixo do tapete.

Emblemática, histórica e dramática sob a gestão de Assauer, foi aquela tarde de sábado em 2001 que ficaria como mancha de sangue e vergonha em toda a história do clube, eternamente zombado como o tal "Campeão de 4 minutos". Em 19 de maio daquele ano, a tabela não exibia a atual supremacia do Bayern de Munique. À época, o campeonato era decido na última rodada, até mesmo nos minutos de prorrogação.

Vencedor por 4min38s

O Bayern tinha três pontos de vantagem sobre os Azuis Reais, que somavam o maior número de gols em relação ao rival bávaro. Para sair vitorioso, o time de Gelsenkirchen precisava vencer o Unterhaching, enquanto o Bayern tinha quer perder para o Hamburgo, fora de casa. Na época, ainda não havia WhatsApp e nem o Zeitgeist era movido pela chegada imediata de notícias, mas o placar do estádio, atualizava os resultados dos jogos da rodada.

Aquela tarde se tornaria uma das mais trágicas da história do time fundado em 1904. Após a equipe treinada por Huub Stevens ter ganho o jogo contra o Unterhaching por 5 a 3, era preciso esperar mais alguns minutos para a bola também parar de rolar em Hamburgo. Enquanto os torcedores do Schalke começavam a se abraçar, chegava ao ouvido de Assauer a notícia falsa de que outro jogo havia terminado com vitória do Hamburgo por 1 a 0.

Começaram os 4 minutos e 38 segundos mais dolorosos para o time de Gelsenkrichen. Nos minutos da partida em Hamburgo, o zagueiro sueco Patrick Andersson anotaria o gol de empate por 1 a 1 e transformaria o Bayern no campeão da temporada de 2000/2001, com apenas um ponto de vantagem.

Rivalidade hoje

Depois da saída do treinador Domenico Tedesco (2017-2019), a estrela dos Azuis Reais anda de férias e o tempo mostra o Borussia Dortmund como um dos melhores Alemanha, uma verdadeira fábrica de talentos. Ambiciosos jovens jogadores optam ir para Dortmund, ao invés de Real Madrid ou Liverpool, porque sabem que na cidade da Muralha Amarela não irão amargar no banco de reservas. Algumas temporadas depois, os seus direitos econômicos são vendidos pelo triplo do valor. Foi assim com Aubameyang, Dembelé e, provavelmente, será assim com Erling Haaland, Alex Witsel e Jason Sancho.

Hoje, a grande rivalidade impede os torcedores de um time pronuncie o nome do outro. Ao se referir ao desafeto, no máximo é mencionar: "O time de Gelsenkirchen" ou "Arena uff Schalke". Quem é Aurinegro nunca pode dizer a expressão "Glück auf" (Boa Sorte), expressão que faz parte do vocabulário schalkeano. Quando os Azuis Reais se referem ao time rival, dizem "A equipe de Lüdenscheid-Nord", bairro onde está localizada a sede do Dortmund. A postura do torcedor mais esperto é fazer mímica de quem desconhece o nome, sempre que alguém o pronuncia, acrescentar: "Nunca ouvi falar".

Sombras do passado

Vamos dar a César o que é de César. Não "somente" o 04 tem em sua história manchas de um passado trincado com a ideologia marrom do nacional-socialismo. Há dez anos, o bairro de Dorstfeld, em Dortmund, é um declarado nazista, com bandeiras penduradas nas janelas, grafites que atraem cada vez mais turistas exibindo a palavra "NAZIS".

Os adeptos desta ideologia compram cada vez mais imóveis neste bairro para ficarem, "entre si". O bairro é até palco para encontro de neonazistas que peregrinam de vários países da Europa: Polônia, Hungria, Holanda. No bairro de Nordstadt, na mesma cidade, pode-se se constatar a miscigenação e a diversidade cultural da região.

Jogos Fantasma

O confronto entre Borussia Dortmund e Schalke 04 na tarde de hoje (24) será o segundo em 2020 sem público no estádio e atualmente batizado de Dérbi Fantasma. Em 16 de maio, em meio ao pico da pandemia da Covid 19, a Alemanha reiniciava o campeonato, como primeiro país no mundo e retomar alguma normalidade futebolística. Isso também, é duplamente, história: em nenhum clube da Alemanha, a presença no estádio de duas torcidas é tão imprescindível e significativa, como em partidas entre Borussia e Schalke 04.

Dois clubes, geograficamente vizinhos, mas culturalmente tão antagônicos. Sob a premissa de sucesso e relevância no futebol europeu, é incontestável a atual soberania do time Aurinegro. Os tempos passaram, a hegemonia schalkeana derreteu e, em 2020, capotou. O reinado do "Pott" pertence, indiscutivelmente, ao BVB.

Em 2016, na final da Copa da Alemanha, no Estádio Olímpico de Berlim, quando o Borussia perdeu para o Bayern, um torcedor Aurinegro viu seu mundo cair ali mesmo. Chorando ao meu lado, vimos um torcedor dos Azuis Reais se aproximar, tocar a mão em seu ombro e dizer: "Deixa que um azul-real te passe a resenha: É melhor sofrer o amargo da derrota do que fazer parte daquela torcida ali", apontando para a arquibancada mergulhada nas cores branco e vermelho.

O revierderby em números:

Primeiro confronto: 2 de maio de 1925

Detentor de recordes de atuações pelos Aurinegros é o ex-goleiro Roman Weidenfeller (24)

Klaus Fichtel, também com 24 atuações, é detentor do recorde de Dérbis pelos Azuis Reais

Placar dos últimos confrontos:

2019/20:
Borussia Dortmund 4 x 0 Schalke
Schalke 0 x 0 Borussia Dortmund


2018/19:

Schalke 1 x 2 Borussia Dortmund
Borussia Dortmund 2 x 4 Schalke

2017/18:
Borussia Dortmund 4 x 4 Schalke
Schalke 2 x 0 Borussia Dortmund

2016/17:
Borussia Dortmund 0 x 0 Schalke
Schalke 1 x 1 Borussia Dortmund

2015/16:
Borussia Dortmund 3 x 2 Schalke
Schalke 2 x 2 Borussia Dortmund