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Como J. César invadiu Fla, vendeu amendoim e virou "Uri Geller" com títulos

Júlio César Uri Geller, ex-jogador do Flamengo - Reprodução/Instagram
Júlio César Uri Geller, ex-jogador do Flamengo Imagem: Reprodução/Instagram

Leo Burlá e Vanderlei Lima

Do UOL, no Rio de Janeiro e em São Paulo

30/09/2020 04h00

A capacidade de tirar os adversários do eixo rendeu ao ex-atacante do Flamengo Júlio César o apelido de Uri Geller, dado pelo ex-técnico e jornalista João Saldanha. Nos anos 80, o paranormal israelense assombrou o mundo com o seu poder de entortar colheres e garfos, tal qual o ídolo rubro-negro fazia com os zagueiros rivais.

Os dribles de Júlio César da Silva Gurjol vem de longe, desde os tempos de garoto na Praia do Pinto, favela próxima à sede social do clube. Peladeiro nas horas vagas, Júlio ganhava uns trocados vendendo amendoim e estacionando carros, mas uma muralha o afastava do futuro. Disposto a entrar no clube do coração, ele não titubeou e pediu que a avó costurasse uma roupa igual a dos meninos ricos da zona sul. Vestido de branco da cabeça aos pés, pulou o muro da Gávea e não saiu de lá até hoje.

"Eu não era sócio, eu pulei o muro do clube e estou até hoje lá dentro. O Flamengo é a minha vida, o Flamengo me deu a oportunidade de eu vender amendoim na porta do clube, depois me deu a oportunidade de jogar nas categorias de base até chegar no maior time da história. Se não fosse o Flamengo, não teria nenhum sentido para mim", disse.

Atualmente funcionário do clube e um dos responsáveis pelo "Fla Masters", o ex-jogador repassou sua carreira em conversa com o UOL Esporte. Rubro-Negro dos mais fanáticos, Júlio não se cansa de exaltar sua paixão pelo clube e revela que quase jogou a Copa de 82 ao lado de Maradona. Não fosse uma entrada às vésperas do Mundial, teria sido "argentino". Confira o papo com o craque.

Flamengo desde sempre

"Eu e o Adílio nascemos ali ao lado do clube, na favela chamada Praia do Pinto. Eu vendia amendoim na porta do clube e eu era flanelinha também, cuidava e limpava os carros. Já com os meus 7 anos, eu comecei a notar que as crianças que entravam no clube estavam todas de branco: meia branca, short branco, camisa branca. Eu pedi para a minha avó, que era costureira, para ele fazer um uniforme para mim. Ela fez o uniforme branquinho e eu pulei o muro. Eu não era sócio, mas eu pulei o muro do clube e estou lá até hoje, não voltei mais. O Flamengo é a minha vida, o Flamengo me deu a oportunidade primeiro de eu vender amendoim na porta do clube, depois me deu a oportunidade de jogar nas categorias de base até chegar no maior time da história. Se não fosse no Flamengo, não teria nenhum sentido para mim."

Primeiros passos

"Eu fiz o primeiro teste no futebol de salão sem ser sócio. Já no domínio da bola, fui aprovado, não tinha como eu não ser aprovado. Assim foi o processo com o Adílio, que foi o maior camisa 8 da história. O Adílio também morava na minha comunidade e eu pedi à Dona Alaíde, que era a mãe dele, para fazer um uniforme branquinho também. Ela fez e pulamos o muro juntos. Aí, eu o apresentei ao treinador, que era o seu Rui. Quando ele dominou a bola já foi aprovado. Não precisou ver muita coisa também, não."

Irmandade com Adílio

"O Adílio é o meu irmão, batalhamos juntos, jogamos em todas as categorias desde o dente de leite. Fomos galgando todas as categorias e chegamos ao lado do time principal. É um orgulho muito grande ter levado o meu amigo ao clube certo."

Saída do Fla e "perda" da Libertadores e do Mundial
Uri Geller posa com taças conquistadas - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

"Na época, não se ganhava dinheiro, e eu tive a oportunidade de ir paro River Plate da Argentina. Eu tinha prometido para minha mãe tirá-la da comunidade, que daria uma casa com água. Não bastava ser uma casa, tinha que ter água na torneira e foi o que eu consegui fazer. Eu também não me arrependo, eu poderia ter sido campeão mundial e da Libertadores. Eu tinha jogado duas partidas, mas eu não me arrependo em nada por ter saído, pois consegui dar uma casa com água para minha mãe e isso foi o maior título. Isso não me chateia, os caras escalam o time e me colocam na ponta esquerda até hoje. Eu agradeço muito ao Flamengo, eu passei o bastão para um belo jogador que era o Lico, que foi lá, cumpriu e foi campeão do mundo. Deus me deu essa oportunidade de dar uma casa com torneira com água para a minha mãe e deu oportunidade para o Lico ganhar a Libertadores e o Mundial. Eu estou aí no rol dos maiores da história e me sinto muito feliz por isso."

"Elevador lotado de camisas 10"
Uri Geller e Zico fizeram história juntos no Flamengo - Arquivo Terceiro Tempo/Reprodução/Facebook - Arquivo Terceiro Tempo/Reprodução/Facebook
Imagem: Arquivo Terceiro Tempo/Reprodução/Facebook

"Eu até falei com os meninos (campeões da Libertadores de 2019), eu agradeci a eles porque eles representaram o clube. Mas eu penso que o time de 80 tinha dez números 10 no mesmo time. Aí já rola uma diferença. O Flamengo (de 2019) tinha Arrascaeta, Diego, Everton Ribeiro e mais quem? Mais nada. Nós tínhamos o Tita, Zico, Adílio, Andrade e eu. O Leandro, se botasse ele de meia, iria também. O Júnior era meia também. Então, a diferença está aí. Eram muitos números 10 dentro do mesmo elevador. Acho que ninguém (de 2019 jogaria em 80), eu acho que ninguém."

Uri Geller hermano

"Eu joguei no Talleres e no River Plate. A rivalidade fora do campo é muito grande, mas imagine dentro. Dentro de campo, eu era um jogador extremamente habilidoso e até um pouco irreverente. A violência é muito grande, mas é como eu sempre falo para os meus amigos: 'a violência e os xingamentos para nós, dribladores, é um combustível tipo gasolina azul'. É como ameaçar o Neymar, como ameaçar o Garrincha e o Zé Sergio. Sempre foi um combustível, por isso que deu tudo certo."

Hostilidades no país vizinho

"Tinha um time na Argentina chamado Loma Negra. Nós estávamos jogando um torneio como a Copa do Brasil, era um time da segunda divisão eu estava jogando a Copa Argentina pelo Talleres. Eu nem vi o lance, não posso falar em maldade, porque quando eu dominei a bola o cara já chegou e não deu tempo. Você imagina jogar no futebol argentino e ser o único brasileiro? Era muito complicado até para arrumar uma amizade dentro do próprio clube. Consegui algumas amizades, é claro, mas a dividida de bola é muito forte com brasileiro, principalmente se jogando na Argentina na época do militarismo você. Sem televisão, era você contra o resto do mundo. Foi bem complicado."

Quase argentino na Copa de 82
Maradona chamou a atenção do mundo já na Copa de 1982 - Steve Powell /Allsport/Getty Images - Steve Powell /Allsport/Getty Images
Imagem: Steve Powell /Allsport/Getty Images

"Eu ia jogar a Copa do Mundo de 82. Eu ganhei a chuteira de Ouro na Argentina, eu ia jogar pela Argentina, não pelo Brasil. O Menotti (César Luís Menotti, ex-treinador da Argentina) ligou para o Telê e perguntou se ele ia me usar. Ele disse que não, que seria o Éder e não sei mais quem. Eu ia jogar pela Argentina, mas eu tive a infelicidade de tomar um carrinho por trás e rompi os ligamentos do meu tornozelo. Não tive como participar, mas seria um prazer ter feito o ataque com o Maradona. Eu acho que eu ia fazer o Brasil sofrer um pouco."