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Filho compartilha estratégias e preserva memória de Caio Júnior no futebol

Caio Júnior entre os filhos Gabriel e Matheus em dezembro de 2015, nos Emirados Árabes - Acervo pessoal
Caio Júnior entre os filhos Gabriel e Matheus em dezembro de 2015, nos Emirados Árabes Imagem: Acervo pessoal

Gabriel Carneiro

Do UOL, em São Paulo

03/09/2020 04h00

Na última semana de maio, foi lançada no Instagram uma página de futebol chamada "Do Vestiário Pro Campo" (@dovestiarioprocampo), administrada pelo sociólogo e empresário Matheus Saroli, 28, que é o filho mais velho do técnico Caio Júnior.

Quase quatro anos após a tragédia do voo da Chapecoense - que vitimou o treinador e mais 70 pessoas entre jogadores, dirigentes, profissionais da comissão técnica, jornalistas e tripulantes -, o perfil na rede social é uma forma de homenagem e preservação da memória do treinador, que, além do time catarinense, trabalhou em Paraná, Palmeiras, Flamengo, Botafogo, Grêmio, Japão, Qatar e Emirados Árabes.

Na página são postados conteúdos particulares de Caio Júnior, que geralmente público e mídia não tinham acesso. São vídeos de preleções, materiais de palestras, planilhas de treinos, relatórios de análise de desempenho e até conversas particulares sobre decisões da época.

Um exemplo é uma conversa entre o treinador e o filho Matheus na semana antes de Chapecoense x Fluminense, pela 26ª rodada do Brasileirão de 2016. Neste papo, Caio Júnior mostrou dúvida se escalava ou poupava o experiente meia Cléber Santana, entre outras mudanças. No fim decidiu poupar e esconder a escalação da imprensa. Matheus temia que o time ficasse lento. Caio respondeu: "No segundo tempo coloco velocidade". A vitória por 2 a 1 teve gol do velocista Lourency aos 44 do segundo tempo.

Nos dias anteriores ao duelo contra o Fluminense pela 25a rodada do Brasileiro de 2016 Caio estava em dúvida se escalava Cléber Santana, seu capitão, ou o poupava. Mas de qualquer maneira ele estava convicto de que precisava de força no meio campo. - A idéia nos dias antes do jogo era com Gil pelo lado direito da segunda linha, jogador de capacidade física que ajudaria a pressionar os laterais e fecharia o meio, e Maia pela esquerda, meia, não ponta, para ajudar no momento sem bola e dominar o meio com bola. No centro do campo Caio estava ciente de que precisava de força física e poder de marcação sem bola, e qualidade técnica e superioridade numérica com bola. - No dia seguinte, véspera do jogo, focado nas necessidades no centro do campo e devido à condição física de Cléber, Caio definiu o meio de campo com Josimar como primeiro volante (1), Biteco e Gil logo à frente na segunda linha do meio em um 4-1-4-1, Thiaguinho pela esquerda - era o único jogador com velocidade e alta capacidade física, necessário já que Gil jogaria no meio - e Arthur Maia pela direita mas com a obrigação de fechar o meio sem bola. Detalhe que Caio não queria revelar a escalação, mas tinha que treinar bola parada. Por isso disse pra imprensa que foi somente um teste. - O Fluminense contava com 3 jogadores no meio do campo com Douglas, Cícero e Gustavo Scarpa.Além dos 3, Marquinho jogava aberto mas buscava jogo pelo centro do campo. Na 3a foto, Caio fala sobre a responsabilidade de Biteco com Gustavo Scarpa. - Jogando fora de casa Caio priorizou a organização defensiva e escalou somente Thiaguinho que tinha poder de velocidade e se planejou para buscar o contra-ataque no 2o tempo. Como ele sempre me dizia, "o jogo se vence no 2o tempo". Foi o que Caio fez,aos 45' Cléber Santana entrou no lugar de Biteco, e o meio campo continuou "novo" e forte, e aos 61' ele tirou Arthur Maia e apostou no jovem Lourency, jogador de lado de campo e de velocidade. O time foi firme no meio do campo e com a qualidade de Cléber e a velocidade de Lourency e Thiaguinho os contra-ataques foram muito perigosos e culminaram em uma vitória com um gol de Lourency aos 89'. - Confira as conversas e os gols da partida.

Uma publicação compartilhada por Do Vestiário pro Campo (@dovestiarioprocampo) em

"Essa busca do acervo para a página foi muito difícil. Primeiro, em relação às mensagens entre mim e ele, tive que reler tudo e isso é bem difícil. Ouvir áudio dele, que por um bom tempo não tinha ouvido. Mas isso está no celular, a parte difícil é só emocional. O computador e o iPad do meu pai não voltaram da Colômbia, voltou o celular, mas ele tinha mania de deletar. Ele tinha um HD com materiais de clubes passados, principalmente de fora. Com o irmão do Pipe [Grohs, analista de desempenho da Chape] vasculhamos o e-mail para buscar relatórios, qualquer coisa desse tipo. Fiquei um bom tempo correndo atrás de material", conta Matheus Saroli ao UOL Esporte.

A página é um reencontro profissional e emocional com o pai e com o futebol.

A partir de 2017, eu seria auxiliar da comissão do meu pai, porque cresci dentro do futebol, acompanhei todas as fases dele, joguei bola até os 23 anos e me preparei. Dois anos antes, ele já queria isso, mas eu tinha receio de não agregar o que ele precisava e ouvir das pessoas que eu estava lá por ser filho do Caio. Mas no fim de 2016 topei. Aí aconteceu tudo. Eu fiquei bem abalado, traumatizado, me afastei do futebol, não conseguia nem assistir por uns dois anos. Aos poucos fui melhorando, voltei a assistir, e então veio essa ideia de compartilhar com as pessoas como funciona a vida de um treinador."

Além de Caio Júnior, a página também ajuda a preservar a memória dos auxiliares do treinador, Duca e Pipe Grohs. Um dos posts traz um relatório de análise de desempenho de 2013, antes do jogo Vitória x São Paulo pela sétima rodada do Brasileiro.

Caio Júnior - Chapecoense/Divulgação - Chapecoense/Divulgação
Caio Júnior levou a Chapecoense à final da Copa Sul-Americana em 2016
Imagem: Chapecoense/Divulgação

No documento, Pipe alertou sobre a lentidão da transição defensiva do São Paulo. Os treinos da semana enfatizaram isso e o Vitória venceu por 3 a 2, com um gol de Dinei em contra-ataque rápido e vertical, exatamente como indicado nas sugestões.

Matheus quer ser jornalista

Além dessa parte histórica, a página ainda contém análises de times e jogadores da atualidade feitas por Matheus Saroli: "Eu exponho as minhas opiniões baseado nas filosofias e métodos que aprendi com o meu pai, não tem como fugir. Outro dia fiz um post sobre Patrick e Edenilson, do Internacional, explicando porque jogam dessa maneira, as funções. Lembrei das minhas discussões com ele sobre outros jogadores no mesmo contexto. Eu tinha muito medo de esquecer coisas que ele me dizia, mas, graças a Deus, esse tesouro ainda está comigo."

Matheus é sócio do irmão Gabriel em uma empresa de intercâmbio esportivo e também criou uma competição de futebol sub-15 que já teve duas edições, a "Copa Caio Júnior". Paralelamente, pavimenta a estrada para trabalhar como jornalista esportivo nos próximos anos.

"Eu fiz cursos online e tenho lido e me preparado. Acompanhei meu pai um tempo como comentarista de rádio e acho muito legal. Conversei com o pessoal de uma rádio aqui de Curitiba para ver se podia passar um tempo estagiando, aprendendo, e isso vai acontecer quando for possível. É meu plano", conta.

Até o plano se realizar, Matheus Saroli seguirá dando pitacos e resgatando histórias do pai campeão no Instagram. Como essa frase em uma conversa despretensiosa com o filho, e agora com tanto significado.

Futebol me tirou muita coisa, mas tem momentos que só estando nele (...) Momentos difíceis, muito difíceis. E momentos felizes, muito felizes."