Topo

Liga dos Campeões 2019/2020

Joia do Bayern é prova da importância de um mundo que acolha refugiados

Aos 19 anos, Alphonso Davies é titular e um dos destaques do Bayern de Munique nesta temporada - Alphonso Davies
Aos 19 anos, Alphonso Davies é titular e um dos destaques do Bayern de Munique nesta temporada
Imagem: Alphonso Davies

Arthur Sandes

Do UOL, em São Paulo

15/08/2020 04h00Atualizada em 19/08/2020 14h37

Alphonso Davies nasceu em um campo de refugiados e hoje é uma estrela do futebol. O lateral esquerdo do Bayern de Munique teve uma das melhores atuações da carreira ontem (14), na goleada por 8 a 2 sobre o Barcelona, pelas quartas de final da Liga dos Campeões, e já é apontado como um dos melhores do mundo na posição. Ele é rápido, habilidoso, promissor e, antes de tudo, a prova viva da importância de um mundo mais acolhedor.

A história de Alphonso não cabe em enganosos clichês de meritocracia. Ele não virou jogador somente por trabalhar duro e acreditar nos sonhos; muito antes disso, precisou também de ajuda humanitária. Sem ela, a família Davies jamais veria o filho brilhar nas fases finais da Liga dos Campeões da Europa.

Victoria e Debeah Davies fugiram da Libéria no final da década de 90, quando o país africano passou por duas guerras civis. "Era assustador. Para ir a algum lugar, procurar alguma comida, era inevitável cruzar com corpos pelo caminho", lembrou Victoria, mãe de Alphonso, em uma entrevista de 2017. "Algumas vezes, a única forma de sobreviver era também carregar uma arma. Nós não tínhamos vontade de atirar, então, decidimos escapar", completou Debeah, o pai.

O casal passou a viver no campo de refugiados de Buduburam, em Gana, mantido pela ONU (Organização das Nações Unidas). Era um descampado, um chão de terra batida, com casas improvisadas e amontoadas que abrigaram dezenas de milhares de pessoas por quase três décadas. Ali, nasceu Alphonso Davies, em novembro de 2000.

"Era seguro, mas não era fácil. A fome também mata no campo de refugiados, não é só na guerra. Se não tiver comida no campo, as pessoas morrem. Por isso vivíamos preocupados: sem comida, o que faríamos? Nós poderíamos tomar água e dormir, mas ele [Alphonso] não sobreviveria assim. Todos os dias precisávamos ter certeza de ter algo para ele comer, fazê-lo viver", conta Debeah Davies.

Alphonso Davies com os pais - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Alphonso Davies (à esq.) com os pais Debeah e Victoria, já morando no Canadá
Imagem: Arquivo pessoal

Alphonso tinha 5 anos quando se mudou com os pais para o Canadá, um país desconhecido, de que mal tinham ouvido falar. Eles passaram por um programa de refugiados que até hoje acolhe imigrantes no país, deixaram família e amigos e foram se estabelecer em outro continente.

O futebol apareceu na época em que Alphonso Davies cuidava dos irmãos mais novos, enquanto os pais trabalhavam, na cidade de Edmonton. Ele passou por alguns times regionais, e, aos 14 anos, foi convidado às categorias de base do Vancouver Whitecaps, a 1.100 km de distância de casa. Estreou na MLS (Major League Soccer) aos 16 anos, fez duas boas temporadas e foi contratado pelo Bayern de Munique.

O crescimento na Alemanha tem sido de tal ordem, que Davies forçou David Alaba a virar zagueiro. Virou titular, fez três gols e deu cinco assistências no último Campeonato Alemão, e agora desfila na Liga dos Campeões: ontem, diante do Barça, fez uma jogada espetacular.

"Tenho orgulho dele. Olhando para trás, de onde viemos, de um campo de refugiados, sem comida e sem roupas? E olhe onde ele está hoje. Tem tudo o que precisa", comemora Victoria Davies, com lágrimas nos olhos e voz embargada.

O Canadá tem atuação história no acolhimento de refugiados e, em 2019, recebeu 30 mil pessoas nestas condições — o país que mais o fez, segundo relatório da ONU. O Brasil seguiu o exemplo neste ano, ampliou o reconhecimento a pessoas refugiadas e viu o número destas crescer para 43 mil, de acordo com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).

A família Davies passou fome, fugiu da guerra e agora vê o filho brilhar no mais alto nível do futebol mundial. É uma conquista deles, que tanto batalharam, um desvio feliz em uma história tão sofrida, e talvez um lembrete de que precisamos de um mundo mais acolhedor: dos 70 milhões de refugiados que a ONU calcula existir no mundo, quantos poderiam brilhar como Alphonso Davies?

Messi e Alphonso Davies - Manu Fernandez/Pool via Getty Images) - Manu Fernandez/Pool via Getty Images)
"Então quer dizer que você vai enfrentar seu maior ídolo?", brincou a mãe de Davies, em um telefonema antes da partida contra o Barcelona de Messi; no jogo eles não se encontraram muito, mas o fã brilhou mais do que seu herói
Imagem: Manu Fernandez/Pool via Getty Images)