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'Jogador é mimado, mas há ditadura pra não se posicionar', diz Wallace Reis

Wallace Reis, zagueiro do Göztepe - Getty Images
Wallace Reis, zagueiro do Göztepe Imagem: Getty Images

Jeremias Wernek

Do UOL, em Porto Alegre

27/03/2020 04h00

"Até na questão amorosa a gente [o jogador de futebol] terceiriza."

Aos 32 anos, Wallace Reis, zagueiro ex-Corinthians, Flamengo e Grêmio e atualmente no Göztepe, da Turquia, não está necessariamente próximo do final da carreira, mas é um jogador estudado —foi essa a imagem que deixou pelos diversos clubes que defendeu. E não para com as leituras, análises, já que pretende seguir no futebol uma vez que se retirar dos gramados. Já terminou cursos na Universidade do Futebol e se prepara para iniciar estudos em classes da Uefa. A formação indica um caminho: ser treinador.

Se realmente virar técnico, com esse objetivo em pauta e tudo o que já vivenciou em vestiários em mente, Wallace sabe que encararia uma classe diferente. O próprio admite que os jogadores se desenvolvem dentro de uma rede de proteção exagerada. "Jogador de futebol é mimado, mesmo, e me incluo nisso", afirmou ao UOL Esporte, em uma longa e elucidativa entrevista.

"A gente foi educado, eu jogo futebol desde os 11 anos, a ser preguiçoso. A terceirizar nossas necessidades e anseios. A gente tem quem leva água, a gente tem quem imprima passagem, gente que leve roupa que a gente compra. O clube formador tem muita culpa, claro. Bota o atleta como refém e ele acaba sofrendo com isso no pós-carreira. A carreira é curta, mas tem gente que para com 22 ou 23 anos e a formação dele no futebol fica para a vida", opinou.

E é aí que ele fala sobre como o atleta pode nem mesmo ter paciência para conduzir um relacionamento amoroso. "O atleta gosta da facilidade. Posso falar do jogador de futebol por ser o que eu vivo. A gente, na maioria, não quer ter desgaste de ganhar a menina na conversa. Tem que ser mais direto, mais rápido. Ele foi acostumado a lidar com tudo precoce e toca a vida assim. Não tem paciência para flertar, para fazer o caminho certo", relatou.

Eu não sei dizer como eu serei como treinador. Estou em transformação constante, daqui uns anos vou pensar de outra forma. O que quero ser é sincero com meus atletas, ser o mais claro possível. A única coisa que tem de ser prezada é a verdade
Wallace Reis

Feliz com a vida no leste europeu, o zagueiro ainda repassou a carreira no Brasil e esse rótulo de ser um jogador fora da curva por ler livros e se posicionar politicamente.

"É a quebra de um paradigma, sim [mostrar personalidade]. Não que eu seja intelectual, sou um cara comum e que gosta de ler. Sou ignorante pra caceta! Sei muito menos do que gostaria. No futebol, muito cara chega sem estrutura familiar e quem joga futebol já é marginalizado. Imagina ser um cara incomum, que fala uma frase fora do convencional. Isso incomoda, incomoda torcida e parte da imprensa", afirmou.

"Ao mesmo tempo que a imprensa pede entrevista diferente, posicionamento, quando esse cara se posiciona, o posicionamento se vira contra quem falou. Quem se posiciona, hoje em dia, é cobrado depois por algo que ficou guardado esperando a hora de ser explorado. Tem uma espécie de ditadura para o jogador não se posicionar", continuou. "Quando falo em ditadura, é o contexto. Pode ser palavra forte, então mudo para repressão. Repressão para não exprimir opinião, emitir opinião te coloca em situação onde pode ser julgado. Quando entra em campo, você é julgado. E ao se posicionar vem a crítica dobrada."

Nelson Rodrigues vive

Wallace começou no Vitória e passou por dois clubes de massa no Brasil antes de chegar ao Grêmio e depois deixar o país. Ao longo da trajetória, construiu a consciência crítica que vê uma pitada (nem tão pequena) da síndrome de inferioridade em cada brasileiro. E aí seu ponto de vista vai além dos vestiários, englobando também o universo boleiro ao seu redor.

"O futebol brasileiro desde sempre tem muito talento. A gente ainda tem um pouco daquela síndrome de vira-lata, aquela ideia que o Nelson Rodrigues criou. A gente valoriza pouco o que é feito no Brasil. Ao ver jogos na Espanha, Portugal dá para perceber que as referências são do topo do topo. Se for ver times de médio e pequeno porte, são limitados e abaixo do que a gente tem no futebol brasileiro. A média é a mesma, a diferença é a grana. Na Turquia o salário é maior do que o salário médio em outras ligas da Europa", apontou.

"Vou dar um exemplo: você viu algum jogo do Athletic de Bilbao? O que todo mundo quer ver é Barcelona e Real Madrid e ali tem jogador de 45 milhões [de euros] e um cara desses joga demais. Mas eu assisti quase todas as rodadas do Campeonato Francês e vi que a média é igual. Muita gente fala do Liverpool, do [Manchester] City, mas poucos sabem como joga o Genoa, o Portimonense. É bem contraditória essa avaliação", frisou.

No dia a dia do futebol, o pensamento realimenta a ideia de inferioridade, resgatando uma das célebres teorias do dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues {1912-1980).

Esse complexo de vira-lata atrapalha o Brasil em todas as áreas. O brasileiro gosta de se boicotar. Aliás, com o atleta de futebol é muito engraçado, sabe. Quando a gente vai treinar e chega mais arrumado escuta: 'ó, vai sair e aprontar depois'. Sempre tem alguém preparado para boicotar o cara. Isso acontece na imprensa, na torcida, nos clubes. Está enraizado
Wallace Reis

Biblioteca da discórdia

Wallace Reis lendo livro - Divulgação - Divulgação
Zagueiro Wallace posa com o livro Marighella, de Mário Magalhães. Foto de 2013, nos tempos de Flamengo
Imagem: Divulgação

Em casa, as referências que ajudam Wallace a ter pensamento crítico se acumulam e geram desespero na hora de organizar tudo. A média de livros devorados por mês caiu, por uma leitura diferente agora, mas o resultado dessa busca assusta a família, admite, aos risos. "Tenho 800 livros em casa. A gente foi se mudar e viu isso e aí não pude mais comprar livros. Minha mulher andou dando uma cortada, não aguenta mais. Não tem onde colocar", revelou aos risos.

Wallace Reis também tem a mania de presentear colegas e amigos com livros. A lista é longa. "Eu acabei de encomendar 'Abusado', do Caco Barcelos. Geralmente eu dou esse livro para jogador, dou de presente mesmo. Dei a Gabriel, que está no Coritiba, Paulo Victor aí no Grêmio, Arthur Maia. Dei a Cleber Santana [uma das vítimas do voo da Chapecoense], Hernane, Filipe Garcia. Eu distribuo livros mesmo", revelou.

Uma pandemia para compreender

A Turquia foi o último país com destaque no futebol profissional a suspender os jogos por conta da pandemia do novo coronavírus. Wallace Reis viu de perto uma reação diferente com o avanço da Covid-19.

Wallace Reis na Turquia  - Emin Menguarslan/Anadolu Agency/Getty Images - Emin Menguarslan/Anadolu Agency/Getty Images
Imagem: Emin Menguarslan/Anadolu Agency/Getty Images

"Fomos o último país a parar mesmo, mas não houve registro de muitos casos, então, também não houve histeria do povo. Provavelmente vamos voltar aos treinos na próxima semana", disse. "Quem ficou apreensivo mesmo foram os estrangeiros. Os turcos lidam bem com isso, até pelo histórico de conflitos na região e tudo", completou.

Até quarta-feira (25), foram 30 mortes por conta da Covid-19 na Turquia, números oficias já menores que os do Brasil. Somente na semana anterior o governo decretou medidas preventivas — como fechamento de comércios.

"A população reage de forma bem normal, não houve desespero como tenho visto aí no Brasil. Aqui, não falta nada no supermercado. O comportamento até chama atenção, existe tranquilidade muito grande aqui", apontou Wallace. "As pessoas estão reclusas, poucas pessoas circulando e pode ser característica do povo mesmo. Dentro de mais umas semanas a gente deve voltar a atuar de novo", afirmou.