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Como o corintiano Fágner salvou um palmeirense após tragédia com noiva

Flávio Gonçalves relembra ajuda de Fagner: "Queria ir ao CT do Corinthians abraçá-lo" - Arquivo Pessoal/Eldio Suzano/Photopress
Flávio Gonçalves relembra ajuda de Fagner: "Queria ir ao CT do Corinthians abraçá-lo" Imagem: Arquivo Pessoal/Eldio Suzano/Photopress

Talyta Vespa

Do UOL, em São Paulo

17/11/2019 04h00

"Todos os dias são difíceis, muito difíceis. Foi uma porrada muito grande na minha vida", se emociona Flávio Gonçalves, o tenente Bahia da Polícia Militar, que perdeu a noiva pouco antes de subir ao altar. Jéssica, que tinha 30 anos, morreu vítima de eclampsia gestacional em setembro deste ano.

Palmeirense desde pequenininho — o que provocou a ira da família corintiana, de Imirim, na zona norte de São Paulo —, Gonçalves foi recebido por jogadores do Palmeiras no fim de outubro, dia que considera dos mais emocionantes. O convite partiu do presidente Maurício Galiotte, quando a história do tenente veio a público.

Bahia relembra o carinho que recebeu do volante Thiago Santos, mas se emociona mesmo ao contar de quem veio a ajuda mais importante desde então: de Fagner, lateral do Corinthians. Foi o jogador quem ajudou a quitar uma dívida "impagável" que o PM teve que assumir com hospital após a morte de Jéssica.

"Quando Jéssica desmaiou na igreja, fomos para um hospital público, mas o espaço não tinha suporte suficiente para atender o caso. Por causa da urgência, corremos no Pro Matre [hospital particular no centro da cidade]. Ela não resistiu. E aí veio a conta, um valor absurdo. No meio daquele desespero, da morte da Jéssica, o Fagner me ligou. O maquiador da mulher dele foi o mesmo que maquiou Jéssica. Ele teve grande influência para que o hospital perdoasse todos os custos. Nunca imaginei que um corintiano me ajudaria. Queria ir ao CT do Corinthians abraçá-lo", disse.

A Pro Matre entrou em contato com a reportagem para afirmar que se antecipou "para que os valores desde os procedimentos com a paciente Jessica e todo o período de internação da Sophia não sejam impedimento para a permanência da bebê em nossa UTI Neonatal e, com isso, não implicará em qualquer ônus às famílias". A nota completa está no final do texto.

tenente e jéssica - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Jéssica e Gonçalves anunciaram a gravidez no começo deste ano
Imagem: Arquivo Pessoal

Flávio e Jéssica se conheciam desde a escola —"mas ela não me dava bola", relembra o tenente. Ele afirma que a garota era a mais popular do colégio. "Eu era apaixonado por ela. Nascemos na mesma maternidade, tínhamos uma ligação muito forte. Começamos a namorar já adultos, depois da escola. Entrei para o Corpo de Bombeiros e ela se formou em enfermagem. Foram sete anos sensacionais", relembra.

Jéssica engravidou de Sofia no começo deste ano e decidiu antecipar o casamento, que aconteceria nesta sexta-feira (15). A cerimônia foi marcada para setembro —a noiva estava grávida de seis meses. Segundo Gonçalves, todos os exames de Jéssica, realizados durante o pré-natal, apresentavam bons resultados.

"Ela parecia saudável, perfeita. Teve alguns picos de pressão e, quando contava à médica sobre as crises, ouvia que não precisava se preocupar. Um dia, ela me procurou e disse: 'Vida, estou tensa com essa pressão alta'. Tenho certeza de que ela foi vítima de erro médico, já que ninguém identificou a eclampsia. Não vou processar porque agora só quero paz. Tenho uma filha para cuidar."

Na madrugada que antecedeu o casamento, Jéssica se sentiu mal e foi para o hospital sem avisar ao noivo, com o intuito de não preocupá-lo. Foi medicada, recebeu alta e passou o dia no salão de cabeleireiro. Ao chegar na igreja, sentiu-se mal mais uma vez e desmaiou. "Eu saí correndo para ajudá-la. Já havia sido bombeiro, então sabia como agir em relação aos primeiros socorros. Meus colegas da PM também me ajudaram, eu me desesperei", diz.

Flávio relembra a dor de ter de autorizar todos os procedimentos cirúrgicos envolvendo a noiva no hospital. "Vi a Jéssica aberta [durante a cirurgia]. Tive de dar autorização para tirar o útero dela. Eu só falava: 'Faz o que for necessário, salve a minha noiva, por favor'", diz.

Sofia tem dois meses de vida e, desde a morte da mãe, está na UTI. Durante a gestação, apesar de Jéssica ter engordado o suficiente de acordo com o período, a bebê não ganhou peso. "Fico com ela na UTI todos os dias. Na maioria deles, chego de manhãzinha e saio de noite. Às vezes, fico lá durante toda a madrugada. O que mais me impressiona é que sou o único pai entre todas as mães que estão ali."

jessica - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

A bebê já tem um enxoval do Palmeiras —com sapatinho e macacão. O pai conta que Jéssica, apesar de não ser muito fã de futebol, o acompanhava em todos os jogos e torcia junto com ele. "Ela gritava gol comigo mesmo sem entender, vestia a camisa do Palmeiras. No estádio, ela só falava dos jogadores bonitos", ri. "Eu dava risada e sempre respondia: 'Tá bom, chuchu, mas beleza não ganha jogo'. A gente brincava muito".

"Ter vivido essa tragédia me fez aprender um monte de coisas, e a principal delas é que minha dor não pode ser maior que meu amor pela minha filha. Já chorei hoje, choro todos os dias, a dor não passa, mas me forço a levantar da cama; a treinar, a trabalhar. Não posso ficar dentro do quarto chorando nem lamentando porque nada vai acontecer. A Jéssica não vai voltar. Nos cinco primeiros dias, fiquei sem comer, sem dormir e me mutilei. Aí olho para a Sofia e dou um jeito de viver", conta.

A recepção pelos jogadores do Palmeiras foi um dos poucos dias felizes do tenente desde a morte de companheira. Ele conta que o convite para conhecer o CT partiu de Galiotte. "Apostei com a Jéssica que a Sofia falaria papai e, não, mamãe, como primeira palavra. Se eu ganhasse, ela me daria uma camisa do Palmeiras autografada. O presidente soube da minha história e me convidou para conhecer o CT e os jogadores", diz.

"Eles pararam o que estavam fazendo quando cheguei. Me abraçaram e disseram que eu estava sendo muito forte. Respondi, é claro, que não tinha outra escolha. Aquele dia mudou minha visão do futebol. Entendi que aquelas pessoas são seres humanos como eu e aprendi que não devo criticar tanto. Todos foram maravilhosos comigo, mas o que mais me deu atenção foi o Thiago Santos. Ele me deu a camisa dele, que estava na mochila. Foi demais, um dia inesquecível", diz. "O Mayke me deu uma caixa cheia de coisas para bebê, acredita?"

A vivência com mães de UTI no hospital fez com que Flávio se tornasse voluntário em uma ONG que ajuda bebês prematuros. "Quero que todas as mães tenham acesso a um hospital decente. Meu sonho é construir um com o nome da Jéssica. Há pouco tempo, comprei uma câmera e estou fazendo curso de fotografia para desenvolver um projeto gratuito para fotografar mães e bebês de UTI. Viver com a minha filha me dá forças para seguir. Essa história não é minha, é da Jéssica, que deu a vida por ela. Sou só um coadjuvante."

Nota da Pro Matre Paulista

"Nós da Pro Matre Paulista nos solidarizamos com a dor do Tenente Flávio Gonçalves da Costa e das famílias dele e da paciente Francisca Jessica Victor Guedes, que deu entrada na Maternidade no último sábado, 14 de setembro de 2019, com morte cerebral devido a um caso grave de eclâmpsia. Nosso compromisso é garantir que o Tenente Gonçalves possa exercer seu papel de pai e dedicar todo amor que a pequena Sophia precisa. Assim, nós da Instituição nos antecipamos para que os valores desde os procedimentos com a paciente Jessica e todo o período de internação da Sophia não sejam impedimento para a permanência da bebê em nossa UTI Neonatal e, com isso, não implicará em qualquer ônus às famílias."