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Morador de rua realiza sonho de ver o Palmeiras jogar: "Você é de verdade?"

Marcos Lopes levou o morador de rua Fábio para conhecer o Allianz Parque - Bruno Grossi/UOL Esporte
Marcos Lopes levou o morador de rua Fábio para conhecer o Allianz Parque Imagem: Bruno Grossi/UOL Esporte

Bruno Grossi

Do UOL, em São Paulo

07/11/2019 04h00

A cabeça pesa. Fábio luta para se manter acordado, mas o sono é forte. Só um ataque perigoso é capaz de fazê-lo despertar. O volume da torcida aumenta, os olhos ardem com os refletores e o coração acelera. Pode parecer alguém entediado por mais um jogo modorrento do Campeonato Brasileiro. A verdade, no entanto, é completamente oposta. Fábio dorme porque está vivendo um sonho em dia de Palmeiras no Allianz Parque.

Ele só parece entender tudo o que viveu naquele dia quando a noite é densa e ele já está de volta à sua "bat-caverna". Desce do carro sem jeito, abraça o novo amigo e pergunta: "Você é de verdade?".

A despedida calorosa antecede o caminho de todos os dias: uma corrida arriscada na rampa de acesso ao viaduto, um pulo esforçado para vencer a mureta encardida e o sumiço entre paredes de concreto para chegar em casa, um cantinho que chama de seu, ali embaixo do viaduto.

Andar todos os dias com camisas do Palmeiras fez Fábio ficar conhecido no bairro da Penha, na zona leste de São Paulo. A região é um reduto corintiano, e o palmeirense é quase uma figura de resistência pelas ruas. Com exceção dos dias em que vai pedir dinheiro no semáforo do Parque São Jorge ou quando busca latinhas na quadra da Torcida Jovem, do Santos. Ali, esconde a camisa alviverde por alguns instantes, até a hora de poder ostentá-la de novo, em território menos hostil.

Em algum momento, a defesa ao Verdão traria boas novas, embora nunca tenha esperado algo em troca. Foi quando, há algumas semanas, o palmeirense Marcos Lopes passou a conversar frequentemente com Fábio para entender de onde vinha tanto amor ao clube. O conhecimento sobre o time surpreendeu o especialista financeiro, que passou a levar presentes alviverdes para o morador de rua.

"Ele tá enrolando você, Fabião!"

E se um boné do Palmeiras já seria capaz de arrancar um sorriso de Fábio, calcule o impacto de um convite para conhecer o Allianz Parque? "No dia do clássico com o São Paulo encontrei com ele e falei que um dia o levaria para o estádio. Ele ficou maluco. Então, decidi convidá-lo para o jogo contra o Ceará", conta Marcos.

Daquela quarta-feira até o dia da partida, Fábio foi tomado por ansiedade e euforia. Contava para Deus e o mundo sobre a promessa de Marcos. Não conseguia parar de pensar naquele convite, não conseguia dormir e muito menos convencer os amigos de que aquilo tudo era verdade. O que mais ouviu foi: "Ele tá te enrolando, Fabião".

Na sexta-feira, véspera do jogo, Marcos apareceu. Deu R$ 20 para Fábio fazer a barba e cortar o cabelo que há um ano não era aparado. Fábio jurou que conseguia resolver isso pela metade do preço, graças a um parceiro são-paulino que estava sempre pela praça vizinha ao esconderijo onde mora debaixo de um viaduto.

Descolou ainda um bom banho na favela onde costuma frequentar pagodes e deitou na "bat-caverna" pouco depois da meia-noite. Entre a zoação e a descrença dos amigos, pegou no sono. Mas despertou completamente em menos de quatro horas com medo de descumprir o combinado com Marcos. Mesmo que estivesse 12 horas adiantado.

Marcos Lopes foi quem levou Fábio, morador de rua na Penha, para conhecer o Allianz Parque - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marcos levou o amigo Gustavo para buscar Fábio em frente à "bat-caverna", na Penha
Imagem: Arquivo pessoal

Até Marcos aparecer na praça em frente ao viaduto na Penha, Fábio disparava para a rua a cada buzina que ouvia na região. E quando o carro chegou de fato, fez questão de levar o amigo mais incrédulo para ver que a promessa seria mesmo cumprida.

Marcos chegou com um presente: uma mochila do Palmeiras recheada com camisas do time, calção, boné, meias, cuecas e um tênis. "Agora fortaleci os kit", brincou, antes de correr ainda mais ansioso para a "bat-caverna" e tomar um banho de guarda-roupa.

Já uniformizado, Fábio mostrou os presentes para os colegas de esconderijo e entrou empolgado no carro de Marcos. O banco de trás se tornou um misto de divã de sessão de terapia e bancada de entrevista no bate-papo conduzido pela reportagem do UOL Esporte e por perguntas curiosas de Marcos e de um amigo, o estudante de jornalismo Gustavo Boschetti, de 19 anos.

"Como é o Allianz? Cabem uns 90 mil?", Fábio perguntou, para ouvir decepcionado que a capacidade do estádio palmeirense é metade de suas expectativas: "Pensava que era maior, mas tá tudo bem. O pessoal tava até agora duvidando que você vinha. Eles vão ver só! Eu sou Palmeiras desde que via meu avô gritar gol e levantava os braços com ele. Nem acredito".

Fábio, morador de rua que conheceu o Allianz Parque em jogo contra o Ceará - Bruno Grossi/UOL Esporte - Bruno Grossi/UOL Esporte
Fábio foi levado para tomar cerveja e comer churrasco em um bar próximo ao Allianz
Imagem: Bruno Grossi/UOL Esporte

"Já fiz muita coisa errada"

Fábio tem uma filha e não a vê há quase um ano. Conta que a mãe ainda é viva e mora em uma favela na zona leste e que, mesmo assim, prefere morar na rua. "Eu apronto demais, eu sumo. Não quero ser um problema para minha família, já fiz muita coisa errada". Hoje, jura que tenta levar uma vida honesta e sabe que esconder as merdas que fez não vai levá-lo a lugar algum.

"Esses dias mandaram uma carta para minha mãe e me chamaram para ir ao Fórum resolver uma pendência. Separei minha carteirinha e vou lá durante a semana. Terça ou quarta, não sei mais os dias certinho. Já fui preso três vezes. Sequestrei um playboy, fui preso por tráfico em um dia em que estava só usando droga, sem vender para ninguém, e depois me enquadraram em formação de quadrilha. Mas eu sosseguei, sei o que é errado", desabafa.

Foram os próprios erros que o afastaram da paixão pelo Palmeiras, herdada do avô. Fábio passou seus 42 anos de vida sem ir ao Parque Antártica, mas diz que lembra como era o estádio antigo. Quando vê o Canindé pela janela do carro, também recorda que foi a uma partida na casa da Portuguesa. Mas sem certeza se Palmeiras estava em campo.

O conhecimento de Fábio sobre o clube intrigava Marcos há tempos. Ele só apontava para o fone de ouvido. Fios de cobre soltos, pedaços de fita isolante, nada conectado. Fábio percebe que a desconfiança persiste, então aperta um botão e cola um dos lados do fone na orelha do novo amigo. O som que sai da pequena caixa de som revela um rádio acoplado.

"Eu vou sempre no terminal de ônibus deixar o fone carregado. E eu sei ler, tenho até o colegial completo. Falo espanhol se for devagarzinho, tá ligado? Yo hablo español. Quando não me tiram, aproveito para ver programa ou jogo na televisão de um bar, de uma padaria. Se sai gol, tô nem aí, fico gritando mesmo", contou.

Fábio, morador de rua que torce para o Palmeiras, em bar próximo ao Allianz Parque - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Os amigos de Marcos receberam Fábio para churrasco em bar na região do Allianz
Imagem: Arquivo pessoal

"Só não grita gol antes que podem ficar putos"

Marcos tem um bom plano de sócio-torcedor e consegue ingressos de graça para os jogos em casa. Naquele sábado de Palmeiras x Ceará, chamou Fábio para ser seu parceiro na arquibancada superior norte. Dali, mostra onde as torcidas organizadas ficam, conta que o campo deve receber grama artificial em 2020 e avisa que os times já estão aquecendo. Fábio logo pergunta por Dudu.

Quando o hino brasileiro começa a ser tocado, Fábio se surpreende e gargalha com os torcedores trocando a letra original por um infinito coro de "Palmeiras, meu Palmeiras". É a última etapa antes do início do sonho. O time do coração está ali, a poucos metros, com o mesmíssimo uniforme que Fábio ganhara dos amigos de Marcos: "Com qual jogador eu tô parecendo?".

O Palmeiras começa o jogo com a mesma empolgação de Fábio. Ataca sem parar e cria boas chances nos primeiros minutos. Em uma delas, Fábio levanta da cadeira com tudo e grita gol antes mesmo da tentativa de cabeçada de Deyverson. Marcos franze a testa, bate nas costas do convidado e recomenda: "Só não grita gol antes que os caras podem ficar putos".

Fábio, morador de rua que torce para o Palmeiras, conheceu o Allianz Parque - Bruno Grossi/UOL Esporte - Bruno Grossi/UOL Esporte
Fábio se emocionou ao entrar na arquibancada e observar o campo de jogo no Allianz
Imagem: Bruno Grossi/UOL Esporte

Um dos caras era o próprio Marcos. Ele contou, no dia anterior, que não era muito corneta e que preferia assistir aos jogos mais sossegado. Só passa dos limites em clássicos, principalmente contra o Corinthians.

A conversa da dupla é interrompida por uma descida de Mayke pela direita. Fábio se estica para acompanhar o lance, que parece terminar com uma defesa do goleiro do Ceará. Frustrado, o estreante desaba para a cadeira, lamentando a chance perdida. Mas o rebote volta aos pés de Zé Rafael. Gol. Fábio mal consegue ver o lance ou se equilibrar para ficar de pé. Pouco importa, ele é pura alegria. Abraça Marcos, e olha encantado para todos os cantos.

"Eu nunca sei o que será do amanhã"

O ritmo do Palmeiras diminui, e Fábio vai sendo dominado pelo sono. Cochila, deixa a cabeça cair e o pé despencar da cadeira da frente. Ele acorda envergonhado, toma um gole de refrigerante do copo que levará para seu acervo palmeirense e bate no guarda-corpo. O gesto é para se manter ligado e incentivar o time. Em poucos segundos, os olhos teimam em fechar novamente.

Marcos não se importa. Pergunta se Fábio quer se deitar como faz uma criança algumas fileiras abaixo. Fábio, orgulhoso, nega, mas admite que está difícil. Culpa da maldita ansiedade que o deixou de pé às 4h da manhã. No intervalo, bebe mais refrigerante e fica chocado com os preços cobrados por um x-burguer ou um cachorro quente. Mais ainda pelo valor de um ingresso.

O debate financeiro chega ao dia a dia de Fábio. Ele diz que já perdeu as contas das vezes em que tentou voltar a trabalhar. O problema é sempre o mesmo: levantam suaa ficha, descobrem seu passado e fecham as portas para um futuro que poderia ser melhor. "É foda", diz. A solução é viver de bicos. Lava carros, cata latinhas e pede no semáforo.

Fábio, morador de rua que torce para o Palmeiras, com Marcos Lopes no Allianz Parque - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fábio e Marcos posam para foto na entrada do Allianz Parque
Imagem: Arquivo pessoal

Fábio acredita que levanta, em média, R$ 20 por dia. "Tem dia que é osso, você passa 12 horas no sol e volta com cinco conto. Tem dia que, em cinco minutos, alguém vai com sua cara e te dá vinte. Uma vez, ganhei cenzão de um palmeirense. Mas nunca sei o que será do amanhã, então não posso sair torrando".

Para evitar que o dinheiro recebido se dissolva entre pagodes e cervejas, Fábio tem estratégias. Procura locais onde moradores de rua podem comer de graça e pede para um amigo comerciante que guarde as notas mais graúdas. É uma forma também de dormir mais seguro, sem medo de alguém tentar roubá-lo. "Eu sei que ninguém vai mexer comigo porque eu não mexo com ninguém".

Na "bat-caverna", onde mora normalmente com mais quatro amigos, há respeito. Eles cozinham e fazem até "umas baladinhas". Para ter o que comer, às vezes é preciso aceitar valores altos demais. Quem controla as vendas nas favelas da região cobra mais de propósito: "Eles sabem que não é todo lugar que deixa a gente entrar. Tem um mercadinho ou outro que eu ainda consigo comprar de boa, mas na maioria já botam segurança pra me tocar pra fora".

O jogo acaba e, graças a milagres do goleiro Weverton, o Palmeiras deixa a noite de Fábio mais especial. Ele se despede da reportagem e segue com Marcos para a Penha. Desta vez o sono chega e Fábio desiste de lutar. Aproveita o conforto do carro para descansar dos efeitos da euforia.

Só acorda do outro lado da cidade para dar um abraço apertado em Marcos. Tudo foi verdade.

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