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Copa do Mundo Feminina - 2019

Vítima de racismo de brasileiros, jogadora francesa superou "fim do mundo"

Wendie Renard comemora após marcar de pênalti pela França contra a Nigéria - Franck Fife/AFP
Wendie Renard comemora após marcar de pênalti pela França contra a Nigéria Imagem: Franck Fife/AFP

Ana Carolina Silva

Do UOL, em Paris (França)

25/06/2019 15h20

"Olha essa Renard, da França. A mulher ganha milhões e não faz nem uma progressiva naquela bucha". Este comentário foi publicado no Twitter na tarde de domingo (23), quando a seleção francesa de Wendie Renard venceu o Brasil por 2 a 1. Ela teve boa atuação, mas, para parte da internet, cometeu o "crime" de ser negra e não ter cabelos lisos. Vítima de comentários racistas feitos majoritariamente por brasileiros, ela segue como uma das jogadoras mais prestigiadas do futebol feminino e celebra sua vitória pessoal: ter trocado o "fim do mundo" pela Copa do Mundo.

A zagueira nasceu na pequena ilha de Martinica, departamento ultramarino francês no Caribe, e cresceu na região norte do local. Por isso, Renard não precisou se naturalizar para ter o direito de defender a seleção. "Nós chamamos a ilha de O Fim do Mundo. Não há nada além de mar na sua frente, e uma montanha gigante às suas costas. Há menos de 2.000 pessoas vivendo em Le Prêcheur (região em que cresceu na ilha), o que já não é muito, mas quando o sol bate forte... Parece que só existem você e a própria ilha", contou a defensora ao "The Players' Tribune".

Ela deixa claro que gostava do "fim do mundo" e costumava pensar que não havia nada melhor. Tudo começou a mudar aos oito anos de idade, quando perdeu o pai para um câncer nos pulmões. "Eu nem sabia o que era isso. Ele nunca fumou ou bebeu, e de repente o médico disse que ele poderia não aguentar muito tempo. Eu não entendi. Quando você tem oito anos, seu pai parece ser eterno. Mas, quando você percebe, as coisas acabam. O oceano não se estende mais", lamentou.

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Imagem: Loic Venance/AFP

"Alguém faz o favor de mandar essa Renard prender a p... desse cabelo, pelo amor de Deus", escreveu outro internauta brasileiro. A jogadora provavelmente não verá este comentário específico, mas já suportou muito preconceito na vida por não corresponder aos padrões de feminilidade. Seu ídolo, por exemplo, era Ronaldinho Gaúcho: "Eu sonhava em jogar como ele. O estilo, o jeito de se mover em campo... Ele dançava em campo! Parecia samba, talvez ele seja um pouco caribenho", brincou.

Alguns destes padrões, como os que a atingiram nesta semana, surgem e se estabelecem em pensamentos racistas. "Eu era um pouco diferente das outras meninas, era meio moleque e obcecada por futebol. Eu corria para jogar na praia. Mesmo naquela época, sem entender o que me esperava, eu já sabia que precisava jogar duas vezes melhor e ser duas vezes mais esperta para ter respeito", relatou Renard.

Não que ela não tivesse apoio. Sobrinha de uma ex-árbitra da ilha e filha de uma mulher que se interessava por esporte, a zagueira não encontrava resistência das figuras maternas. "Quando eu e minhas irmãs brigávamos pela TV, eu sempre tinha as juízas do meu lado. A minha mãe entrava no quarto e perguntava sobre a gritaria. Minhas irmãs reclamavam sobre algum jogo de futebol que eu havia colocado. A minha mãe, então, perguntava quem estava jogando e se sentava para ver", disse.

"Um dia, houve um jogo da seleção francesa feminina. Eu vi Marinette Pichon e disse para a minha mãe: 'Um dia, você vai me ver na TV com aquela camisa. Sim, aquela serei eu. Você vai ver'. A camisa da França significa muito. Em Martinica, nós sabíamos que ela precisava ser conquistada", relembrou.

O diálogo com a mãe poderia ser seguido por uma história de sucesso imediato, mas Renard demorou para encontrar seu caminho no futebol. Desde uma professora que desdenhou de seu sonho de ser uma jogadora ("Wendie, você precisa escolher uma profissão que exista") até a primeira rejeição nas categorias de base do país, houve um longo caminho.

Quando ela tinha 14 anos, foi informada de que o centro de treinamento de Clairefontaine teria uma peneira para jovens meninas. Um dos seus treinadores na escola providenciou as passagens. "Eu estava tão feliz. Estava tão animada. Estava tão aterrorizada. Era frio, não tinha o sol que eu conhecia. Na ilha, eu era conhecida como a menina que jogava futebol. Mas na França? Ninguém me conhecia, era só uma menina de uma das ilhas. Eu me esforcei muito, mas sentia que não ia funcionar", contou.

De fato, não funcionou: Wendie não foi aprovada. O mesmo treinador que a levara para Paris conseguiu negociar uma semana de testes para ela no Lyon, na qual ela teria sete dias para impressionar ou voltar para o fim do mundo. "Era o destino", afirmou Renard, hoje capitã e seis vezes vencedora da Liga dos Campeões com o Lyon - os últimos quatro títulos foram consecutivos.

"Alguns anos depois, eu liguei para a minha mãe, que por muito tempo sentia vergonha por saber que outras pessoas estavam cuidando de sua filha em Lyon, e pude dizer para ela que estava ganhando dinheiro. Como uma mulher. Jogando futebol", concluiu.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A ilha de Martinica é um território ultramarino francês, por isso, faz parte da França. O texto foi reformulado para deixar a informação mais clara.

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