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Conheça local de futebol raiz em Londres por onde passaram Beckham e Terry

Joshua Law/Colaboração para o UOL
Imagem: Joshua Law/Colaboração para o UOL

Joshua Law

Colaboração para o UOL, em Londres

03/02/2019 04h00

Pegue as chuteiras e caneleiras, meião, calção e camisa. E não esqueça o casaco, touca, luvas e cachecol. Saia de casa e corra para o ônibus, ou comece a tirar o gelo do carro. Quer jogar na Sunday league football? Pois bem, é isso que você tem de fazer. E é o que milhares de pessoas na Inglaterra fazem cada domingo antes de entrar nos campos de várzea espalhados pelo país.

Para cerca de mil pessoas cada domingo em Londres, o destino será o mesmo, Hackney Marshes, um complexo no leste da cidade com incríveis 88 campos de futebol. No final de semana, vive com os gritos e apitos do velho esporte britânico.

Geada em Marshes - Joshua Law/Colaboração para o UOL - Joshua Law/Colaboração para o UOL
Imagem: Joshua Law/Colaboração para o UOL
Ao chegar lá, por volta das dez horas num domingo de janeiro, já dá para ver centenas de jogadores correndo para o local de suas partidas e tentando desesperadamente se aquecer, enquanto os últimos resíduos da geada da noite anterior desaparecem, deixando a grama verde novamente.

Para muitos, o Marshes, como é conhecido em Londres, é um lugar extremamente especial. Uma das maiores instalações de futebol amador do mundo, é considerado o lar espiritual de Sunday league. Vários jogadores famosos, como David Beckham, Rio Ferdinand e John Terry, entre muitos outros, começaram a jogar lá quando crianças. E, olhando para este enorme espaço aberto, é também possível de descobrir muito sobre a história e do contexto atual da cidade.

Pavilhão em Marshes - Joshua Law/Colaboração para o UOL - Joshua Law/Colaboração para o UOL
Imagem: Joshua Law/Colaboração para o UOL
Demora cerca de 10 minutos para andar até o outro lado, passando por um prédio com uma fachada de metal marrom, um dos dois pavilhões construídos nos últimos anos para os abrigar vestiários. No percurso é possível ver poças congeladas e ouvir os apitos iniciais vindo de todas as direções. Quando chega-se ao outro lado, encontra-se um senhor, vestido de botas, casacão verde e boné azul, assistindo a um jogo intensamente disputado.

"Sou Dick Caylor," ele diz. "Sou o vice-presidente e administrador de arbitragem da Camden Sunday Football League." É um entre muitos campeonatos que usam esses campos durante a temporada.

Geada em Marshes - Joshua Law/Colaboração para o UOL - Joshua Law/Colaboração para o UOL
Imagem: Joshua Law/Colaboração para o UOL
"[Hackney Marshes] é o melhor local para futebol amador em Londres," continua, "você vai para outros lugares e os jogos estão sendo cancelados por causa da geada ou de campos encharcados. Este gramado está perfeito."  

Caylor elogia também a infraestrutura nova, "aquele pavilhão foi construído," ele fala, apontando para o outro prédio recém-terminado, "Tem aquecimento nos vestiários, água quente para tomar banho. É fantástico."

Mas nem sempre foi assim. O Marshes começou a ser usado para futebol amador em 1946, logo após o término da Segunda Guerra Mundial. De acordo com Johnnie Walker, presidente da Hackney and Leyton Football League, um dos campeonatos amadores mais antigos da região, "eram campos muitos básicos, mas prestavam."

Walker, falando por telefone, pois a idade e saúde não permitem mais que venha todo domingo para assistir em loco, continua: "o Marshes original foi construído em cima dos entulhos da blitz, os entulhos das bombas em Londres. Eles precisavam de algum lugar para colocá-los, então botavam lá". Logo depois de a guerra acabar, a prefeitura decidiu aproveitar o lugar, antigamente uma área pantanosa ao lado do Rio Lee, para um espaço de lazer.

"Eu comecei a jogar lá em 1947", Walker conta. "Nós trocávamos de roupa em pequenas barracas, eram escuras, sem luz. Tínhamos de lavar toda a lama, e Deus sabe o que mais, em um cocho de gado, sob uma corrente de água fria. Mal dava para para jogar [por causa da lama], eram um ao lado do outro, e tinha mais de 120 campos."

Shavan em Marshes - Joshua Law/Colaboração para o UOL - Joshua Law/Colaboração para o UOL
Imagem: Joshua Law/Colaboração para o UOL
Desde então o Marshes tem sido testemunha para muitas mudanças na cidade e a chegada de pessoas do mundo inteiro. Primeiro foram irlandeses e italianos, e depois pessoas da Ásia e o Caribe. "Temos todo mundo na nossa liga. Tem times ucranianos, ganeses, camaroneses, romenos, búlgaros, albaneses. É como se fosse uma Organização das Nações Unidas. Tinha um time brasileiro, é uma pena que não tem mais, eles eram bons. Tinha um time colombiano. Temos de tudo", completa.

"Vimos um pouco de racismo ao longo dos anos," lamenta. "Mas depois todo mundo se conhece, fica de boa, e vê que podem se dar bem". Futebol, ele acha "absolutamente" ajuda em integrar as pessoas à sociedade britânica.

Andando mais um pouco e agora ouvindo frequentes comemorações de gol, é finalmente possível sentir um pouco do calor do sol. Vira para um lado e o goleiro veterano e barrigudo de um time grita para seu colega. "Não abuse o c... do juiz, deixe ele em paz!".

Time de amarelo em Marshes - Joshua Law/Colaboração para o UOL - Joshua Law/Colaboração para o UOL
Imagem: Joshua Law/Colaboração para o UOL
Do outro lado tem mais uma partida competitiva e animada, com uma equipe de amarelinha da seleção brasileira enfrentando outro de rubro-negro flamenguista. Em alguns minutos assistindo, ambas têm chances claras de gol.

Do lado amarelo, tem quatro substitutos esperando entrar em campo, gritando palavras de incentivo e fazendo embaixadinhas para não correr o risco de uma hipotermia. Um deles, Lincoln Stewart, conta que esse vai ser o seu vigésimo ano jogando no Marshes. "Eu comecei no fim da década de noventa. Já joguei em muuuiitos times," ri, mostrando os dois dentes de ouro na frente da boca.

Por que ele ainda vai, depois de tanto tempo? "[O Hackney and Leyton Football league] é o melhor campeonato de Londres. É amigável. É a melhor coisa para fazer no domingo de manhã".

"Melhor que igreja", brinca outro, e levanta mais uma risada dos suplentes.

Lincoln Stewart em Marshes - Joshua Law/Colaboração para o UOL - Joshua Law/Colaboração para o UOL
Imagem: Joshua Law/Colaboração para o UOL
"Sou da Jamaica," continua Stewart. "Estou aqui há mais de trinta anos. Tenho cinquenta agora, mas ainda jogo". Ele explica que o time dele, o Quinine, consiste principalmente de pessoas do Caribe, mas também tem ingleses e somalis. No time adversário, há italianos, portugueses e brasileiros.

O adversário, NW London FC, também tem várias pessoas na beira do gramado, alguns esperando a chance de jogar e outros de calça jeans, assistindo e dando instruções. Um fala que é brasileiro. "Meu nome é Geazi dos Santos, sou de Criciúma, Santa Catarina. Tenho 21 anos e estou aqui há um ano. Sou eletricista". Logo o técnico o chama para aquecer.   

Richard de Nascimento - Joshua Law/Colaboração para o UOL - Joshua Law/Colaboração para o UOL
Imagem: Joshua Law/Colaboração para o UOL
O amigo dele, Richard de Nascimento, de 24 anos e também nativo de Criciúma, se diz impressionado com o lugar no qual o seu clube joga. "Me surpreendi a primeira vez que vi tudo isso". Ele também concorda que é a melhor coisa para fazer num domingo de manhã. "Não é só pelo fato do futebol, mas de conhecer várias pessoas de lugares diferentes. É o futebol que une todo mundo."

Conversando ao lado de mais um amigo, Rafael Silvério, machucado, portanto não apto a jogar, Richard conta que o estilo de jogo é diferente daquele com que é mais acostumado. "Aqui é mais bruto. O pessoal no Brasil tem um pouco mais de habilidade e o pessoal aqui tem um pouco mais de brutalidade, é mais pegado o jogo."

E o frio? "Interfere bastante. Onde eu morava em Santa Catarina, faz frio, mas aqui é diferente por causa do ar. Aqui a gente corre e parece que fica mais sufocado. Lá, joga-se na época do ano que mais faz calor, que é 80% do tempo. Aqui joga-se de setembro a maio".

Trave sendo arrumada em Marshes - Joshua Law/Colaboração para o UOL - Joshua Law/Colaboração para o UOL
Imagem: Joshua Law/Colaboração para o UOL
Apesar do bom humor dos jogadores, juízes e espectadores, ainda tem algumas dificuldades para serem enfrentadas. A Football Association, conta Dick Caylor, não ajuda times amadores. "Não estão investindo nada em futebol de raiz. A FA é uma piada atualmente." Os seis clubes londrinos da bilionária Premier League também ignoram os times deste nível.

"Futebol está diminuindo por causa do preço agora," fala Caylor. "O Marshes é barato comparado com outros campos. Aqui paga-se 60 libras [por time]  para [alugar] o campo e vestiário, mais 35 para o juiz. Em outros lugares, você paga 90 libras somente para o campo. Por isso muitos times param de jogar."

Johnnie Walker concorda: "Alguns [campos] custam mais de 100 libras por jogo, é muito para esses rapazes de classe trabalhadora. Tem centros esportivos sumindo por todo lado. Já perdemos mais de metade dos campos no país, de acordo com o Sport England [a organização que distribui dinheiro para esporte na Inglaterra]. Perdemos bastante aqui".

London Stadium - Ben Stansall/AFP - Ben Stansall/AFP
Imagem: Ben Stansall/AFP
Um dos motivos pela perda no Marshes foi a Olimpíada, sediada no Queen Elizabeth Olympic Park, a um quilômetro de distância. Para os jogadores em campo até dá para ver a ArcelorMittal Orbit, uma escultura feita para a Olimpíada, que fica ao lado do London Stadium, onde o West Ham agora manda os seus jogos.       

"Os Jogos Olímpicos foram terríveis para nós," conta Walker, "Eles fecharam doze campos nossos para fazer um estacionamento de ônibus". Ainda derrubaram os vestiários que ficavam lá. "A gente tinha que se trocar e conduzir nossa organização ao ar livre durante um ano. Quando chovia, tínhamos que entrar no carro."    

A BBC também fez um festival de música no próprio Marshes que danificou os gramados. "Tinha Rihanna e todo mundo," relembra. "Eles destruíram 30 campos colocando os equipamentos lá. Custou 300 mil libras para consertar. A BBC não pagou. A conta foi parar com os cidadãos de Hackney". Anos após o megaevento esportivo terminar, e depois de muita luta com as autoridades, a grama finalmente foi reinstalada recentemente.

Em contato com o UOL Esporte, a BBC respondeu sobre a acusação. "O Hackney Weekend da BBC Radio 1 foi um sucesso retumbante, com milhares de fãs da região curtindo uma seleção de artistas do mais alto nível. Como em qualquer evento de música de grande porte ao ar livre, alguns danos devem ser esperados, mas tomamos todas as medidas cabíveis para evitar maiores prejuízos para o Marshes e trabalhamos junto com a sub-prefeitura do Hackney em cada etapa. Segundo o nosso acordo com a sub-prefeitura, eles concordaram em cobrir os custos finais da restauração dos gramados do Marshes".

Os novos habitantes que chegaram ao bairro com a gentrificação da área nos últimos anos, porém, continuam sendo um problema para quem quer manter o Marshes do jeito que está.

Walker lamenta que "eles não conhecem a história do lugar. Eles se manifestam sobre qualquer coisa que tentamos fazer. Queremos colocar propaganda [para arrecadar dinheiro] e coisas assim [mas eles não deixam]. Perdemos seis bons campos para um grupo que colocou um 'jardim comestível' [horta pública, para pessoas cultivarem frutas e vegetais]. Bem, você não iria querer comer aquilo, pessoas levam os cachorros para andar lá, e você pode imaginar como está."

Mesmo assim, Walker continua curtindo o espaço que frequenta durante mais de 60 anos, "Eu gosto da atmosfera e amabilidade. As pessoas são tão amigáveis e respeitosas."

Andando de volta para o novo prédio com todos os jogos terminando, algumas pessoas ao redor comemorando e outros irritados com derrotas, William Asenso, britânico do time Jaffna FC, para na linha lateral do seu campo.

"Olha quantos times estão aqui," fala, "e todo mundo joga com a atitude correta. Não tenho nada para reclamar. É um grupo de boas pessoas, não importa qual time você joga." Três colegas do Jaffna FC ao lado do William, Shahan Sivanathan, Parmilan Kandasamy e Denvar Antonyrajah, acenam as cabeças concordando com tudo que foi dito.

Os times e os seus futebolistas continuam aparecendo, e enquanto jogarem, ninguém tirará o status do Hackney Marshes: o lar da Sunday league.