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Ele escapou da tragédia da Chapecoense e virou herói do acesso no Fortaleza

Marcelo Boeck veste uniforme verde em homenagem aos companheiros da Chapecoense - Divulgação/Fortaleza
Marcelo Boeck veste uniforme verde em homenagem aos companheiros da Chapecoense Imagem: Divulgação/Fortaleza

Roberto Oliveira

Colaboração para o UOL, em Recife

29/09/2017 04h00

Antes de adormecer por volta da meia-noite, Marcelo Boeck olhou seu WhatsApp. Chegavam mensagens dos companheiros no grupo da Chapecoense, nas últimas horas do dia 28 de novembro de 2016, lhe parabenizando pelos seus 32 anos. Três horas depois, o celular tocou; era sua cunhada. Ele não atendeu. Ela insistiu. "Quando a gente recebe ligação assim na madrugada, é porque tem alguma coisa errada", pensou Boeck, relembrando aquela noite ao UOL Esporte.

- Alô? - atendeu Marcelo, sonolento.

- Graças a Deus… - respondeu a cunhada, aliviada.

- O que foi?

- Liga a TV!

"Liguei a TV e vi que o avião tinha sumido. Eu e minha mulher ficamos chorando na cama", lembra. O casal não dormiu mais, buscando informações, até que se confirmou a queda da aeronave na alvorada do dia 29. "Hoje eu estaria dando a pior notícia do mundo para os nosso filhos", divagou a esposa de Boeck, numa frase que nunca saiu da memória do goleiro que faz aniversário no mesmo dia de um dos seus filhos.

Por um conjunção de coincidências, Marcelo não embarcou no voo LaMia 2933 que caiu nos arredores de Medellín. Ele havia sido titular da Chapecoense durante a temporada, mas perdido espaço para o goleiro Danilo, herói da classificação à final da Copa Sul-Americana, após a chegada do técnico Caio Júnior.

"No dia que a gente ia jogar contra o Palmeiras [27 de novembro, dia do título brasileiro], o treinador de goleiros me disse que provavelmente iriam três goleiros para Colômbia, e eu ia. Mas saiu a convocação e foram só dois. Pensei até em parar de jogar, falei inclusive com minha mulher. Aí quando aconteceu a tragédia a gente encarou com uma tristeza muito grande pela perda dos amigos, mas também como se fosse um aprendizado, uma nova chance."

Além de perder espaço na meta da Chapecoense, outro motivo distanciou Marcelo da fatídica viagem. Dez dias antes do embarque, ele recebeu uma ligação do então vice-presidente do Fortaleza, Ênio Mourão, com uma proposta para se mudar para o Ceará. À primeira vista, as condições pareciam pouco sedutoras.

O Fortaleza preparava-se para sua oitava temporada na série C, após três eliminações seguidas no Castelão no jogo do acesso. Era sair de um time em ascensão, finalista pela primeira vez de um torneio internacional, estabilizando-se na elite do futebol nacional, para um clube tradicional e de massa no Nordeste, mas que viva um calvário na terceira divisão. Prestes a completar 32 anos, contudo, Marcelo queria tempo de jogo. E a negociação não demorou muito, embora tenha sido postergada devido à tragédia.

"No dia 18 de novembro, o Fortaleza me ligou, foi o primeiro contato que a gente teve. Passamos dias conversando, até que houve a tragédia 10 dias depois. Aí depois disso eu pedi um tempo, foi uma tristeza muito grande, todas as pessoas com quem eu vivia confinado não voltariam mais, foi um luto. Achei até que o Fortaleza não ia querer esperar. Depois do velório, numa segunda-feira, a gente retomou contato. E na sexta fechamos o pré-contrato", conta o goleiro do Fortaleza, que também atuou por Sporting e Marítimo, de Portugal, e pelo Internacional - onde foi revelado e fez parte da geração que conquistou Libertadores e Mundial.

Uma nova página da história

Marcelo - Danilo Lavieri/UOL - Danilo Lavieri/UOL
Marcelo dá entrevista na Arena Condá um dia após a tragédia com o voo LaMia 2933
Imagem: Danilo Lavieri/UOL

Marcelo Boeck decidiu, então, repaginar a carreira e seguir rumo a Fortaleza. Os primeiros capítulos de 2017 foram adversos, com eliminação diante do Ferroviário na semifinal do Campeonato Cearense, que seria vencido pelo o rival Ceará, e a desclassificação ainda na fase de grupos da Copa do Nordeste. No Leão do Pici, porém, a prioridade era a Série C.

"Quando a gente assina contato com a Fortaleza, por mais que tenha o Cearense, a Copa do Nordeste, só se fala em sair da Série C. E ninguém nem fala da classificatória, já é o mata-mata, então tu já chega com essa carga, com esse histórico na cabeça. Por mais que você visse a força da torcida, mas não vinha o resultado, ainda mais no Castelão. Mas tudo que aconteceu esse ano, acho que isso nos calejou, sempre fomos questionados, vaiados, mas chegamos no mata-mata e revertemos a pressão em motivação", diz Marcelo, natural de Vera Cruz (RS).

Nas quartas de final da Série C, o Fortaleza bateu o Tupi por 2 a 0 no Castelão no jogo de ida, e viajou a Minas Gerais podendo perder por até um gol de diferença na partida de volta. No jogo que valia a vaga, fim de semana passado, Marcelo suportou a pressão e consagrou-se como herói com defesas decisivas. Resultado: 1 a 0 para os mineiros, e acesso à segunda divisão para os cearenses após quase uma década na terceira divisão.

Com menos de uma temporada no tricolor cearense, apenas 38 jogos, ele já considera o Fortaleza como sua segunda casa no Brasil - e sente no cotidiano a idolatria dos tricolores na quinta maior cidade do país.

"Quando a gente sonha em ser jogador, quer jogar em clubes de massa, com torcida grande, para alcançar grandes objetivos e ficar marcado na história. Eu nunca pensei: `quero ser ídolo`. Mas nunca sabemos como é na realidade quando você chega no patamar de ídolo. Hoje mesmo [quinta] fui no shopping com a família, porque segunda tem jogo e é aniversário da minha filha, então não vamos poder comemorar, e a gente não consegue mais caminhar normalmente. Existia isso um pouco, mas agora tomou uma proporção inimaginável, a gente vê o tamanho da torcida do Fortaleza, a necessidade desse acesso. Tenho vivido dias que quando paro para pensar me emociono de felicidade."

Quase um ano após a tragédia, na próxima segunda (2), o Fortaleza recebe o Sampaio Corrêa no primeiro jogo semifinal da Série C. Mais uma vez, Marcelo deve vestir o uniforme verde em memória dos colegas de trabalho e amigos que nunca retornaram a Chapecó.