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Multicampeão no Grêmio, eterno reserva de Danrlei curte a vida em pizzaria

Murilo está bem diferente da época em que atuava como goleiro - Arquivo pessoal
Murilo está bem diferente da época em que atuava como goleiro Imagem: Arquivo pessoal

Marcello De Vico e Vanderlei Lima

Do UOL, em Santos e São Paulo

23/07/2017 04h00

Muitos jogadores de futebol que passaram por grandes clubes certamente sonham com momentos de anonimato durante a carreira ou após pendurar as chuteiras - como sair nas ruas e não ser reconhecido, por exemplo. Murilo, ex-goleiro do Grêmio e dono de dez títulos pelo clube gaúcho, entre eles a Libertadores de 1995, tem a ‘sorte’ de conseguir essa façanha quase que o tempo todo, a não ser por um ou outro tricolor mais fanático. Dois motivos contribuem para que isso aconteça: o bom tempo na reserva de Danrlei entre os anos de 1994 e 2000 e a total mudança na aparência – hoje ele é careca e tem parte da barba branca.

Muito bem humorado, ele se diverte com a situação e conta ao UOL Esporte histórias hilárias sobre o anonimato e a surpresa de torcedores ao revelar sua identidade.

Uma delas aconteceu na faculdade, onde Eliezer Murilo Engelmann (até mais conhecido no ambiente acadêmico como Eliezer) cursou dois anos de administração em Porto Alegre. “Um cara que estava há um tempão estudando comigo... Sentava na minha frente na faculdade e todos os dias eu conversava com ele, falava de futebol, e estou eu conversando com um colega na rua que é torcedor do Grêmio e um cara ao lado diz que tinha jogado no Zequinha, o São José-RS, e perguntou se eu era jogador; eu respondi que sim e peguei uma foto que tem aqui no meu celular: eu, o Ademir Maria, ex-goleiro, e o Danrlei... Ele pegou o celular da minha mão e falou: ‘Esse aqui é o Danrlei e esse aqui é o Murilo’, e conversando comigo eu tinha dito para ele que fui goleiro, que o meu nome é Murilo, e foi muito engraçado, todo mundo rindo... Outros que estavam fora da conversa começaram a rir e passaram alguns segundos e caiu a ficha dele. Hoje eu estou com barba, a minha barba está meio branca, careca, totalmente diferente... É mudança da água para o vinho”, diverte-se Murilo, hoje com 43 anos e com passagens por outros três clubes na carreira: Fluminense, Juventude e São José-RS.

Murilo, ex-goleiro, posa para foto na época em que defendia o Grêmio - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Mas não foi só sobre o anonimato que Murilo conversou com o UOL Esporte. O papo foi longo e abrangeu diversos momentos marcantes não só de sua carreira, mas também de sua vida. Entre eles a emoção de sair de um lugar onde nem tinha luz para ser goleiro de um dos maiores clubes do Brasil, a sadia concorrência com Danrlei, as principais conquistas no Grêmio e até a mudança que acabou proporcionando em toda família: de colorado para tricolor.

“O pai virou gremista, a mãe, todo mundo passou a ser gremista, a usar a camisa. Depois da final da Libertadores 95 eu fui para Santo Antônio da Patrulha e, quando cheguei lá, tinha uma carreata em Catanduvinha, no interior, e os meus irmãos de moto, vestidos de Grêmio, com bandeiras e tal. Mas depois que eu saí do Grêmio eles voltaram a ser colorados... Eles falam que nasceram de novo [risos]. O meu pai, já falecido, voltou a ser colorado, mas bem diferente, não era mais tão doente. O pai ficou morno”, brinca Murilo, hoje dono de uma pizzaria em Passo d'Areia, zona norte de Porto Alegre.

Pai colorado arrumou teste no Grêmio e o incentivou

Eu lembro como se fosse hoje. Cheguei no meu pai, eram 9h30 da noite, a hora que eu cheguei do treino, e falei: ‘Pai, não está dando, não vou mais’, porque eu gastava muito. Era a passagem de Porto Alegre ida e volta, tinha que comer, almoçar... Hoje esse custo seria uns 80 a 100 reais por dia, e eu tinha outros dois irmãos e estava gastando todo esse dinheiro. E o pai falou: ‘Não, tu vai sim, você não vai ter outra oportunidade igual’. Eu lembro que minha mãe até saiu do quarto e chorou... Uma das vezes, nos primeiros dias, minha mãe foi junto comigo, eu não sabia nada, era no meio do mato. Eu nasci num lugar que não tem esquina [risos], mas voltando a história: o meu pai gostava muito de futebol, meu pai era colorado na época, e foi o meu pai que me trouxe para o Grêmio... Na semana passada me perguntaram: ‘Por que ele não levou você para o Internacional?’, e eu não sei responder. Mas o meu pai tinha um amigo, gremista roxo, e foi ele quem falou para o meu pai de me levar para fazer um teste no Grêmio, e o meu pai era o único que acreditava que dava pra eu ser jogador de futebol.

Saudade do tradicional ‘peneirão’

Hoje eu não vejo mais o peneirão. Eu lembro quando eu cheguei ao Olímpico... Ao lado do campo tinham uns 300 guris, isso no mínimo, de várias idades, dos 14 aos 18 anos, por aí, e era 20 minutos para cada time: ou você dá sorte para a bola ir no gol ou você não passa no teste. Para ser goleiro você precisa pegar um time bem ruim, para que a bola vá para o seu gol. Eu lembro que, do ano que eu nasci [1973], só eu e outro passamos. Só que tu passa no primeiro teste, depois tu começa a treinar com o grupo e existem as outras fases. Eu lembro que ainda fiz 45 dias de testes... Naquela época parecia ser mais difícil, mas também, em compensação, tinha peneirão, e hoje não tem, eu não vejo mais. Hoje a maioria chega com empresário.

Sofrimentos nos testes do Grêmio

Eu era da cidade de Santo Antônio da Patrulha, a 80 km de Porto Alegre, e eu ia e voltava todos os dias, então era bem puxado porque, às vezes, eu chegava no Grêmio e era trabalho físico, e às vezes me falavam: ‘não precisa fazer para não se desgastar’, e aí eu chegava no treino e ia embora. E tinha um problema maior: eu sou do interior de Santo Antônio da Patrulha, 16 km da cidade São 10 km no asfalto e 6 km de estrada de chão, e o ônibus só passava no asfalto e eu tinha que me virar, e não tinha celular para ligar e dizer ‘estou chegando’, ninguém sabia onde tu andava [risos]. Ia e depois esperava voltar na expectativa da pessoa voltar... O meu pai tinha carro, mas ele não sabia que horas eu ia chegar, não tinha nem ideia que horas que eu pegava o ônibus em Porto Alegre e, o pior: o meu último ônibus para Porto Alegre saia às 7 horas da noite, e eu tinha que chegar na rodoviária correndo... Às vezes eu comparava a passagem e saia correndo porque eu tinha cinco minutos para chegar ao ônibus, senão eu perdia, e eu não conhecia Porto Alegre, se eu me perdesse lá ninguém me acharia, nunca mais. Mas eu nunca perdi treino, eu sou meio ‘caxias’, então eu ia sempre antes, antecipado, porque se dependesse de sair no horário certinho com certeza eu não ia chegar. E fazendo teste, se tu não tiver responsabilidade e chegar no horário, fica difícil, tanto é que depois, no profissional do Grêmio, mesmo eu sendo reserva, eu era o chefe da caixinha, eu que controlava os atrasos e multava; e depois repartia para todo mundo.

Emoção ao passar no teste: “a gente não tinha nem luz”

Foi o Vieira quem me aprovou no teste, ele jogou no Grêmio na década de 50 e 60, ele era treinador do juvenil do Grêmio. E quando eu atravessei o campo eu ouvi isso: ‘Nunca dois goleiros que nasceram no mesmo ano subiram para o profissional do Grêmio; eu e o Danrlei somos do mesmo ano [1973], e o Danrlei estava no vestiário, e o Vieira falou: ‘ô garoto’, e deu um frio na barriga e ao mesmo tempo um alívio porque, se ele me rodar, pelo menos acaba essa coisa de estar vindo todos os dias, gastar dinheiro do pai...

Ex-goleiro, Murilo atuou por Grêmio, Fluminense, Juventude e São José-RS - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Aí ele falou assim: ‘ô garoto, depois do treino tu passa lá no departamento de futebol amador para você assinar a ficha’. E foi um alívio pra mim, era muito estressante. Eu lembro que, quando cheguei em casa, eu larguei esse papel em cima da mesa e não falei para os meus pais, e quando a mãe viu ela falou: ‘O que é isso aqui’? E eu respondi: ‘eu passei no teste’. Meus pais ficaram muito felizes, muito mais do que eu. Outro dia eu fui dar um testemunho [Murilo é evangélico] para o guri, falar um pouco da minha vida, e eu mostrei uma foto de onde eu sou. Nem eu acredito às vezes, porque eu não tinha nem vizinho, o meu vizinho mais perto era quase a 1 km de distância, então tu imagina... Era difícil. Para se ter ideia: nesta chácara onde até hoje a minha mãe mora, a gente não tinha luz elétrica, a gente via TV só se o carro estivesse em casa para gente ligar na bateria, depois tinha que dar uma volta com o carro para carregar a bateria.

A ‘eterna concorrência’ com Danrlei

O currículo dele fala por si só, e a moral que ele tem aqui no Rio Grande do Sul... Eu fui reserva do Danrlei dez anos, do juvenil ao profissional. Agora, amizade não temos. Nunca fomos inimigos, um querendo derrubar o outro, isso nunca existiu, era uma coisa sadia, sempre foi, nos dávamos super bem. O Danrlei tem o jeito dele, eu respeitava, e eu tinha o meu jeito, ele respeitava. Nós fomos bem diferentes um do outro. Em 2009 ele fez a despedida do futebol, e me convidou, ele esteve aqui e ficou uma hora sentado conversando comigo. A gente não tem aquela amizade, mas tem o respeito. Ele é um cara diferente.

Maior feito no Grêmio: entrar numa fria e ganhar Recopa

Meu maior feito no Grêmio foi a Recopa Sul-Americana [1996, contra o Independiente-ARG] porque uma coisa é você ser titular, e a outra é você entrar no meio do jogo, é muito pior, é muito ruim, e eu entrei logo num pênalti. O cara cruzou uma bola na área o Danrlei subiu, e o centroavante deles, um grandão, trombou no Danrlei e a bola pegou na ponta do dedo dele e quebrou, e o árbitro deu pênalti. O Danrlei ficou caído, eu achei que ele estivesse fazendo tempo, naquele jeitão dele, aí o Rivarola correu para o banco de reservas e fez o gesto que o dedo havia quebrado... Eu entrei e tomei o gol no pênalti, mas nós ganhamos de 4 a 1, e foi um monte de bola no gol, O treinador era o Felipão, foi ele quem me deu a oportunidade de jogar no profissional do Grêmio, em 93. Este jogo da Recopa Sul-americana foi marcante para mim.

Levou 5 a 2 do Inter... Mas Grêmio deu o troco em 2015

Por 18 anos eu aguentei a torcida do Internacional falar... Foi aquele Grenal, 5 a 2, em que Danrlei se machucou. Eu entrei e estava 1 a 0 para o Internacional, e eu tomei quatro gols. Isso foi em 97, o jogo foi no Olímpico. O Grêmio não ganhava do Internacional de goleada há muito tempo, e em 2015, 18 anos depois, o Grêmio meteu 5 a 0 no Internacional. Agora a maior goleada passou a ser os 5 a 0... É mais que 5 a 2, né? [risos].

Saída ‘estranha’ do Grêmio e melhor fase da carreira no Flu

Eu saí estranhamente do Grêmio, porque eu tinha contrato e eles disseram: ‘Não vamos precisar mais de você, não vamos te utilizar e damos o passe pra ti, você abre mão do que tem pra receber’? Tinham algumas coisas atrasadas, mas aí eu perguntei: ‘Eu posso continuar treinando até aparecer time’? ‘Pode’, aí eu falei: ‘então beleza’. Mas se tu lembrar, naquela época o Grêmio mandou muitos atletas de Cristo embora, isso foi em 2000. Eu sou. Não sou mais atleta, eu sou de Cristo [risos].

Murilo, ex-goleiro do Grêmio, mudou bastante da época em que era jogador - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Apareceu o Santa Cruz de Recife e eu acertei para ir, só que eles não quiseram me dar o passe que haviam prometido... Não tinha nada assinado, era questão de palavra, e deu uma discussão na época. Aí o vice-presidente do Grêmio entrou na conversa e falou assim: ‘A situação mudou, nós mudamos de ideia’, só que aí não deu certo com o Santa Cruz. Isso foi numa segunda-feira... Na quarta acertei com o Fluminense e na sexta assinei contrato. E quando eu cheguei no Fluminense fiquei sabendo quem me indicou: foi o Valdir Espinosa, que hoje está no Grêmio. Minha melhor fase foi em 2001, no Fluminense. Fui campeão carioca em 2002, mas, claro, o Grêmio é a minha casa, a minha referência.

Hoje é dono de pizzaria ‘diferente’: “temos a pizza de feijão”

Eu não tentei nada com futebol. Hoje eu tenho a pizzaria que me ocupa bastante tempo. Fica na zona norte de Porto Alegre, no bairro Passo d’Areia, pertinho de onde fica o clube São José, pertinho do estádio. A pizzaria chama Don Vitto. Eu me tornei sócio da pizzaria com o meu sogro de 99 para cá, mas a pizzaria já existe há 23 anos. Aqui eu cuido das compras junto aos fornecedores e pagamentos de funcionários, eu sou administrador. Quando o pessoal do Fluminense vinha aqui dizia que nunca tinha comido pizza igual. Nós temos pizza de coração, coração de galinha com molho, hmmm... Nós temos pizza de feijão, tem uma com linguiça apimentada que a gente chama pizza mexicano... Nós baixamos o preço do rodízio com esta crise, aqui nós temos mais ou menos 230 lugares com 55 sabores de pizzas.