Conmebol orientava equipes a usarem empresa que levava Chapecoense
A companhia aérea que levava a delegação da Chapecoense de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia) para Medellín (Colômbia) foi fundada em 2009, fracassou na tentativa de operar com voos comerciais, mudou sua composição em 2015 e contava com apenas uma aeronave em funcionamento. Ainda assim, era usada regularmente por clubes e seleções em deslocamentos na América do Sul. Segundo o UOL Esporte apurou, o sucesso da Lamia no futebol do continente tem uma explicação: havia uma orientação informal da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) para que o serviço fosse escolhido.
A informação foi confirmada por quatro clubes brasileiros e dois prestadores de serviço associados a essas equipes. De acordo com relatos, a Conmebol usava o know-how como argumento e chegou a fazer pressão para que a Lamia fosse selecionada como meio de transporte em viagens no continente.
A aeronave usada pela Lamia era um Avro Regional Jet 85, quadrimotor fabricado pela British Aerospace que também era conhecido como Jumbolino. Tinha 17 anos de uso. A companhia já havia prestado serviços a seleções de Argentina, Bolívia e Venezuela, além de clubes como Atlético Nacional (Colômbia), The Strongest, Blooming, Oriente Petrolero, Real Potosí (Bolívia) e Olimpia (Paraguai) e da própria Chapecoense.
“Fizemos uma viagem com esse avião na partida contra o Cerro Porteño [Paraguai]. Tivemos uma condição climática muito ruim e, pela logística já definida, deveríamos voltar logo depois do jogo. No entanto, depois de falar com oficiais de segurança, achamos melhor esperar tudo ficar mais calmo e seguir apenas no dia seguinte. A própria agência aceitou isso”, disse Juan Carlos De La Cuesta, presidente do Atlético Nacional, em entrevista coletiva concedida na Colômbia. “Voltei de Assunção a Medellín na cabine do comandante. Enfrentamos mau tempo, passamos por uma tempestade, que inclusive teve gelo e neve, e eles me explicavam as coisas. Era um avião que tinha todas características de uma boa aeronave”, completou Reinaldo Rueda, técnico da mesma equipe, em entrevista à rádio brasileira “Bradesco Esportes FM”.
Existem muitas dúvidas sobre os motivos de uma marca tão modesta ser usada com tamanha frequência na América do Sul. “Ocorre que a empresa escolhida tinha tradição de transportar as equipes de futebol e já tínhamos usados serviços deles anteriormente para uma viagem à Colômbia. Como deu certo da última vez, decidimos usar de novo”, relatou Luiz Antônio Palaoro, vice-presidente jurídico da Chapecoense. O time catarinense chegou a pedir à CBF (Confederação Brasileira de Futebol) uma indicação de companhia aérea que fizesse trajetos na América do Sul. A entidade nacional pediu 24 horas para responder, e nesse ínterim soube que a cúpula da equipe havia fechado com a Lamia.
A Chapecoense disse ter pago US$ 100 mil (R$ 338,73 mil) apenas pelo voo fretado entre Santa Cruz de la Sierra e Medellín. Empresa consultada pelo UOL Esporte afirmou que uma companhia de porte maior poderia fazer diretamente a viagem São Paulo/Medellín por algo entre US$ 150 mil (R$ 508,10 mil) e US$ 170 mil (R$ 575,84 mil).
A ideia inicial da cúpula da Chapecoense era fazer um voo com a Lamia do Brasil para a Colômbia. No entanto, como a empresa não está baseada em nenhum dos países, essa possibilidade foi vetada pela Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
Se tivesse comprado passagens em voo de carreira, a Chapecoense também poderia ter voado de São Paulo para Medellín com um custo muito próximo do que a equipe gastou apenas com o último trecho da viagem.
Lamia foi fundada por ex-parlamentar e fracassou duas vezes
A Lamia foi fundada em 2009, em Mérida (Venezuela), cidade usada no acrônimo que batizou a companhia (Línea Aérea Merideña Internacional de Aviación). Fundada por Ricardo Albacete Vidal, ex-parlamentar da Venezuela, a empresa surgiu na esteira de um acordo do governo de Hugo Chávez para fomentar o setor aéreo no país.
Curiosamente, porém, a companhia foi registrada como uma empresa de ciência e tecnologia. Recebeu aporte de um fundo de investimento oriundo da China e chegou a anunciar projeção de operar com 12 aeronaves, mas não conseguiu lançar nenhum voo comercial – na época, Albacete responsabilizou a burocracia e o governo de Mérida, que era do chavista Marcos Díaz Orellana.
Em 2013, antes de lançar um voo sequer, a Lamia migrou sua operação para o Estado de Nova Esparta, que na época era gerido por Carlos Matta Figueroa, chavista ainda mais ferrenho. Mais uma vez, contudo, a empresa não conseguiu se estabelecer. A justificativa de Albacete para o segundo fracasso teve como base a crise financeira enfrentada pelo país.
Albacete lançou uma terceira investida em novembro de 2015, quando fundou na Bolívia a Lamia Corporation SRL. A companhia tinha inicialmente uma autorização para atuar como pequena operadora.
A partir do reposicionamento da Lamia, a empresa também passou a ter novos donos no registro. Os sócios listados desse ponto em diante são Marco Antônio Rocha e Miguel Quiroga, que conduzia o avião da Chapecoense.
Na madrugada de terça-feira (29), quando fazia o voo de Santa Cruz de la Sierra para Medellín, a aeronave da Lamia não conseguiu prioridade de pouso. Depois, ficou sem combustível, relatou pane elétrica e caiu. O acidente matou 71 pessoas – havia 77 pessoas na aeronave.
Conmebol nega ter feito campanha por uso da Lamia
Nesta quarta-feira (30), em nota oficial publicada em seu site, a Conmebol negou ter feito campanha em favor do uso da Lamia. Segundo o texto, a entidade “esclarece que entre as atividades de logística que a confederação oferece para realizar torneios não está incluída a coordenação de nenhum tipo de transporte, assim como a recomendação de provedores”.
Na nota, a Conmebol também diz que “desmente os rumores que estão circulando nos meios durante esse momento de tanta dor”.
* Colaboraram Bruno Freitas, Danilo Lavieri, Felipe Vita e Luiza Oliveira, do UOL, em Chapecó
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