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Vida suspeita de Havelange passou por mercado de armas e desvio de dinheiro

Joao Havelange, em foto de 2012 - AFP PHOTO / ANTONIO SCORZA
Joao Havelange, em foto de 2012 Imagem: AFP PHOTO / ANTONIO SCORZA

Roberto Pereira de Souza

Do UOL, em São Paulo

16/08/2016 08h40

João Havelange, que morreu nesta terça-feira, aos 100 anos, no Rio de Janeiro, nunca gostou de futebol. Ele gostava de água limpa para nadar, mineral para beber, queijo fresco, nada de álcool. João adorava venda de armas e negócios com bancos estrangeiros. Esporte era sua imagem, não seu conteúdo.

Nadador do Fluminense, desprezava esportes populares, praticados por jovens mulatos da periferia, que suavam a camisa. João gostava mesmo era de acumular riqueza, poder e ser tratado como chefe de estado.

O pai de Havelange era um técnico belga, que representava uma empresa de armas, no Rio de Janeiro. E ali começou a ligação do futuro nadador olímpico com o comércio de armas, negócio que lhe traria dinheiro e prestígio no auge das ditaduras brasileira e latino-americanas, a partir de 1970.

Mas o primeiro sucesso profissional do dirigente brasileiro não começaria no esporte, embora tivesse sido um razoável jogador de polo aquático. Seu primeiro passo bem dado rumo à fortuna aconteceu em 1944, como advogado de uma empresa de ônibus, a Jabaquara.

Sem saber, Havelange abriria, no fim da Segunda Guerra Mundial, um verdadeiro pote de ouro, usando o velho estilo usado pelos nazifascistas de que “os fins justificam os meios”.

A Jabaquara explorava linhas de transporte coletivo no bairro que leva o mesmo nome, na Zona Sul da capital paulista. O bairro ainda estava em formação, sem asfalto e a empresa tinha planos de operar uma linha intermunicipal até a Baixada Santista.

Para isso, a Jabaquara teria de adquirir a empresa Cometa. Para não ser esmagado pela concorrência, Havelange “convence” um gerente do Detran paulista a bloquear o licenciamento dos ônibus importados pela principal concorrente.

Esse contato com o funcionário do Detran marcaria a vida de Havelange para o resto de sua vida. Ele nunca mais deixaria de enviar cartas ao ex-diretor do departamento de trânsito. Cartas telegráficas seriam enviadas durante os 24 anos em que o dirigente ocupou a presidência da Fifa, datilografadas, de várias partes do mundo.

Bloqueando ilegalmente a concorrência, o advogado Havelange se transformou em diretor da empresa Cometa, em 1948, cargo que ocuparia mesmo quando esteve à frente da Fifa, em  seis mandatos consecutivos, de 1974 a 1998.

Desvio de US$ 13,4 milhões da CBD

Em 1958, Havelange chega à presidência da Confederação Brasileira de Desportos (que reunia todos os esportes) e, generoso com os generais da ditadura brasileira, se mantém no cargo com um trabalho de blindagem bastante eficiente. Seus assessores eram militares ou civis apaixonados pela ditadura.

Sua administração na CBD foi marcada por desvios contábeis, que só foram conhecidos em 1974, quando o general Ernesto Geisel recebeu os informes do Serviço Nacional de Informações. O escândalo era enorme: uma montanha de dólares desaparecera dos cofres da CBD nos dezesseis anos em que o dirigente presidiu a entidade. Havelange nunca explicou o paradeiro de US$13,4 milhões (segundo correção monetária feita até 1994), repassados pelos generais ditadores aos cofres da confederação esportiva.

Essas informações constam de reportagem publicada pela revista “Playboy”, em maio de 1994. Foi a primeira vez que um perfil real de Havelange foi publicado, quebrando a rigidez de sua reputação de “chefe de estado”, acima de qualquer suspeita.

A reportagem de “Playboy” explica que a ditadura tinha interesse em promover o futebol no país inteiro. A Caixa Econômica Federal iniciava o patrocínio da loteria esportiva e o partido dos militares, a Arena, gostava da ideia de vincular o jogo de bola ao jogo político. Havelange era o homem certo para essa missão. Do jogo político ele saltaria também para o jogo do bicho, nos anos seguintes.

Foi o general Adalberto “Cacau” Barros Nunes que colocou o Serviço Nacional de Informações no encalço de Havelange. Quando o general-presidente Ernesto Geisel descobriu a fraude da CBD, Havelange já estava eleito na Fifa e o ministro Mário Henrique Simonsen foi instruído a tapar o buraco deixado pelo homem que comandaria o futebol mundial.

Enquanto o dinheiro sumia dos cofres da CBD, Havelange usava a imagem de Pelé para se projetar na África. Dali sairiam os 16 votos que o elegeriam à presidência da Fifa, na vitória contra o candidato inglês Stanley Rous, em 74.

Mas, dois anos antes de assumir a direção do futebol mundial, de mãos dadas com ditadores do mundo todo, Havelange exercita com sucesso sua vocação de mercador de armas, conseguindo clientes até no Sri-Lanka e na África.

A entrada no mercado de armas teve um estímulo emocionante: US$ 500 milhões, vindos supostamente de paraísos fiscais. Em 1972, surge a sociedade do dirigente com o ex-ministro salazarista Luiz Maria Teixeira Pinto.

Passaporte falso e US$ 500 milhões

Com medo de ser assassinado pela polícia secreta portuguesa nos calçadões de Copacabana, Teixeira Pinto, um economista que colocou Portugal no Mercado Comum Europeu, entrou no Brasil com passaporte falso. Na bagagem, um segredo: plano para investir US$ 500 milhões em território brasileiro. Esse dinheiro tinha origem desconhecida.

A fortuna foi investida no mercado imobiliário, no sistema financeiro, produção de granadas, mísseis e munições. A Indústria Mantiqueira/Valparaíba, próximo a Piquete, em São Paulo, assinava os lotes de bombas.

O primeiro lote de 80 mil granadas foi vendido para o ditador boliviano Hugo Banzer, em 1973, com financiamento do Banco do Brasil.

Mas o ano não foi tão bom para Havelange. Ele tentou fraudar seu sócio na Orwec Química, o amigo de natação, José Roberto Hadock Lobo (morto em 2009). 

Uma ação por fraude societária ficaria engavetada no Rio de Janeiro por mais de  20 anos, até ser julgada em 1994. Ao final, Havelange faria um acordo com Hadock Lobo.

ISL, indústria do suborno

Ao chegar à Fifa, em 1974, Havelange conhece Horst Dassler, dono da Adidas. Da união dos dois surge, em 1982, a International Sports Leisure, a ISL, que seria campeã mundial em suborno de agentes da Fifa. A composição acionária era de 50% para a Adidas e 50% para a agência japonesa Dentsu, que ainda mantém sólido relacionamento com a Fifa.

Um funcionário da agência de publicidade e marketing Dentsu aparece na lista de propinas arquivada na corte suíça de Zug. O funcionário A. Takahashi estava por trás da empresa Renford Investiments, com sede em Hong Kong.

 Durante 24 anos, a ISL seria líder absoluta na arte de subornar homens da Fifa, que escolhiam qual rede de televisão mundial iria transmitir os eventos da Copa do Mundo, com exclusividade geopolítica.

Essa indústria de subornos em favor de oficiais da Fifa teve Jean Marie Webber, “o homem da mala”, como seu principal gerente. Interrogado, Webber confirmou o esquema: “levava tudo em malas cheias de dólares”.

Durante os mandatos de Havelange, cerca de US$ 150 milhões foram usados como suborno de burocratas do futebol.

Da lista de beneficiários arquivada no tribunal suíço,  constariam nomes de brasileiros, ocultos em empresas registradas em paraísos fiscais.  A lista traz nomes sugestivos de empresas como Sanud, investigada pela CPI do Futebol em 2000 (e ligada a RicardoTeixeira), Beleza, Wando, Ovada e Sicuretta, entre outras.

Por coincidência das duas últimas  consoantes, a empresa Garantie JH recebeu, em 3 de março de 1997, um repasse de US$ 1,5 milhão

Álibi para almirante argentino, suspeito de assassinato

Em 1978, Havelange se transforma em álibi contábil para o almirante Carlos Alberto Lacosta, organizador da Copa da Argentina e, depois, processado por fraude, corrupção e assassinato de opositores à ditadura. Havelange legitimou um depósito de US$ 500 mil na conta do almirante suspeito, na forma de um “empréstimo pessoal” e não propina recebida da Fifa.

Em 1989, Havelange “elege” seu genro Ricardo Teixeira para presidência da Confederação Brasileira de Futebol. Usando o mesmo estilo do sogro, com uma sequência de empréstimos estrangeiros que nunca foram pagos, Teixeira se mantém na CBF até o dia 12 de março de 2012. Ele renunciou alegando problemas de saúde.

Em 1994, o procurador-geral da Justiça do Rio de Janeiro, Antonio Carlos Biscaia, confirma: “João Havelange que, há anos preside a Fifa, está lá recebendo do jogo do bicho”. Quando foi eleito para a CBF, Teixeira recebeu um beijo do bicheiro Castor de Andrade. O mesmo bicheiro guardava em cofre uma carta de Havelange, que atestava seus “bons antecedentes e seu fervor religioso”. Em 97, Havelange visitou Castor de Andrade em sua última passagem pela cadeia. O bicheiro morreu no mesmo ano.

Havelange também foi membro vitalício do Comitê Olímpico Internacional (COI). Em dezembro de 2011 ele se demitiu em meio a investigação por ter recebido suborno. Com sua demissão, a investigação foi interrompida na entidade.