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Pelé: Se fosse brigar quando fui chamado de negro, processaria todo mundo

Jorge Olavo

Do UOL, em Curitiba

11/02/2015 06h00

As polêmicas recentes envolvendo episódios de racismo no futebol são encaradas por Pelé como exageradas. Para ele, a indiferença seria a melhor resposta para "bandidos e doentes" que vão para os estádios para praticar a segregação.

Em entrevista exclusiva ao UOL Esporte, Edson Arantes do Nascimento lembra que, ao longo de sua carreira nos campos, foi vítima de vários episódios de racismo em diversas partes do mundo, mas sempre preferiu ignorar os agressores.

"Xingavam, mas nunca houve essa preocupação, essa atenção que foi dada para os que gostam de segregar. Se eu fosse brigar todas as vezes que me chamaram de negro nos Estados Unidos, na Europa, na América Latina e no Brasil, eu ainda estaria processando todo mundo", afirma o Rei do Futebol.

A entrevista foi dada, nesta terça-feira (10), em Curitiba. Pelé esteve na capital paranaense para participar do lançamento de 19 cursos de pós-graduação à distância na área esportiva, que serão ofertados a partir deste ano pelo Grupo Uninter em todo o país. Entre as novas formações estão Gestão Profissional do Futebol, Direito Desportivo e Políticas Públicas para o Esporte. "Uma das grandes experiências que eu tive foi quando saí do Brasil e passei seis anos nos Estados Unidos. Lá, o futebol e todas as modalidades são muito mais valorizados nas escolas e universidades que no Brasil. Aqui, a profissionalização do esporte está atrasada", disse Pelé.

Esse foi um dos primeiros compromissos públicos em que Pelé esteve presente após 16 dias internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, no final de 2014. O Rei do Futebol contou como foi o período de internação e também falou sobre a crise na administração dos clubes brasileiros, a torcida única em grandes clássicos e o desempenho da seleção brasileira.

Confira abaixo a íntegra da entrevista:

Saúde

O que mudou na sua agenda após o problema de saúde?

Na realidade, na agenda não mudou nada. Acabo de chegar da África, da final da Copa da África. Parei uns 30 dias quando tive a infecção hospitalar. Graças a Deus, me recuperei e estou aí. Continuo cumprindo agenda. Vamos ter agora esta semana do Carnaval, que vou descansar. Logo após, a gente já começa a atender uns compromissos que, por causa da internação, eu tive que cancelar. Às vezes, eu brinco: estou pronto para outra. Mas não quero outra não. [risos]

Teve algum momento mais complicado dentro do hospital?

Na realidade, eu não tive muito problema não. O que talvez tenha assustado um pouco o pessoal foi o anúncio que o Pelé tinha ido para a UTI. Realmente eu fui para a UTI, mas era para mais proteção. Começamos a receber muitas visitas no meu quarto de parentes dos internados. Eles batiam na minha porta e queriam tirar foto. Como ficou muito forte essa pressão, [os médicos] falaram: "A gente vai colocar você em uma UTI porque aí a gente te preserva". Eu falei: "Ótimo". Graças a Deus, já passou.

Pelé e Edson

Antes da Copa, em entrevista à Folha, você falou que o Edson cuidava do Pelé. Como estão hoje o Edson e o Pelé?

O Edson continua cuidando do Pelé, sem dúvida nenhuma. O Pelé é mais popular, mais famoso, não sofre tanto. Para segurar a barra do Pelé, quem vai para a igreja, quem vai comungar, confessar, é o Edson. É o Edson que segura essa barra. Se você vai para qualquer canto do Brasil e diz que esteve com o Edson, passa batido. Mas, se você fala que almoçou com o Pelé, aí já é diferente. Coitado do Edson. O Edson sofre. [risos]

Como você vê o seu título de Rei?

Eu até já acostumei a ser chamado de Rei, apesar de pagar os meus impostos e não ter nenhuma regalia. O único país que não tem nenhuma regalia ao rei é no Brasil [risos]. Não tem direito nenhum, mas é uma grande responsabilidade. Como eu sempre falei, o Edson toma conta do Rei Pelé e procura não deixar o Pelé fazer muita bobagem por aí, não errar muito.

Racismo

Temos tido casos de racismo no futebol. Como você vê essa repercussão e isso continuar ocorrendo?

Na minha maneira de entender, eu acho que deram muita ênfase a essa coisa do ser humano. Tem dificuldade e racismo contra o japonês, contra o gordo, contra o negro. No tempo em que eu era jogador profissional, era a mesma coisa. Xingavam, mas nunca houve essa preocupação, essa atenção que foi dada para os que gostam de segregar. Eles não são torcedores normais, são doentes que vão para os estádios e ficam ofendendo. Se todos fizessem como o Daniel [Alves], quando jogaram uma banana quando ele foi bater o escanteio, descascassem a banana, comessem e não fizessem nada, nunca mais ninguém ia fazer nada. O grande problema é que dão atenção a esses malucos que vão para o jogo, que não são torcedores, são bandidos.

Você vê como um certo exagero toda essa repercussão?

Claro, sem dúvida nenhuma. Infelizmente, nós temos o racismo no Brasil com o japonês, o negro, o gordo. Se eu fosse brigar todas as vezes que me chamaram de negro nos Estados Unidos, na Europa, na América Latina e no Brasil, eu ainda estaria processando todo mundo.

Seleção brasileira

Como o Brasil pode superar o 7 x 1 contra a Alemanha?

É uma coisa difícil de explicar, mas eu acho que é um momento de reflexão e de organização. O Brasil, individualmente, tem os grandes jogadores de todo o mundo. Vamos ver se a gente organiza agora a administração no Brasil.

O que o Dunga já fez que o agradou?

Nós temos falta de tempo para preparar a equipe. Isso é muito triste no Brasil porque quase todos os convocados jogam no exterior. Para você formar e treinar uma seleção brasileira como era no nosso tempo, não dá tempo. Eu acho que o Dunga é parte disso. Eu acho que ele preparou uma equipe que ainda não teve tempo de preparar, de organizar como talvez até ele quisesse.

A seleção olímpica teve um resultado ruim recentemente, ficou em quarto no Sul-Americano sub-20. Ela tem chances de levar o ouro no Brasil?

Tudo isso faz parte desse processo difícil que o Brasil está passando. Não tem dúvida. Se as grandes seleções estão preparando suas bases e temos esse problema no Brasil, isso resulta nessa insegurança em todas as modalidades do esporte.

Você acha que é generalizado?

Claro, mas como o Brasil já teve outras épocas com problema e recuperou, é evidente que nós vamos recuperar. É meio triste você apanhar em casa, mas isso é coisa do futebol. Outros países grandes também perderam em casa.

Crise no futebol

Recentemente, você disse que o futebol estava nivelado por baixo. A que se deve isso?

Apesar de nós termos brasileiros como os melhores jogadores nas equipes europeias, na administração [do futebol], infelizmente, a gente ainda está pecando. É por isso que eu falei. Nós estamos tendo dificuldade de fazer a administração das equipes. Uma equipe como o Flamengo, a maior torcida do Brasil, não podia estar com dificuldade financeira. O Corinthians também não esteve bem. O Santos está muito mal. Alguns times até desapareceram. No Rio, Bangu e Olaria... Quem ama o futebol, quem vê o futebol, vê essa decadência do futebol brasileiro na parte administrativa.

Como você vê a torcida única em grandes clássicos do futebol?

É triste. O único esporte que você tinha, por suposto, juntar todos os povos. No Brasil, estão fazendo a separação. É triste você saber que tem que tomar essa providência para poder continuar um campeonato no Brasil. Acho que chegou o momento de o governo ver isso, porque esse é um problema social e não esportivo.

Lei Pelé

Hoje, 17 anos após a criação da Lei Pelé, existe algum ponto dela precisa ser revisto?

Não. Alguns jornalistas chegaram a comentar que a Lei Pelé está deixando os jogadores a sair do Brasil. É um equívoco muito grande, porque o jogador de futebol é um profissional que tem que ter os direitos de ir e vir como em qualquer outra profissão. A luta [com a lei] foi essa. No nosso tempo, o time ficava com o passe do jogador. O jogador cometia qualquer erro ou qualquer indisciplina e o presidente tirava do time, encostava e não vendia. O jogador não podia sair. Com a Lei do Passe, o jogador ficou como um cidadão comum, o que eu acho que foi um avanço muito grande no futebol. Ficou livre. O que acontece é que, infelizmente, os dirigentes de clubes de futebol brasileiros começaram a passar essa parte de administração para os empresários. Na realidade, quem administra os clubes hoje são os empresários. Não são os presidentes. O empresário que negocia com o jogador. Esse foi o erro da administração do futebol brasileiro. Os presidentes de clube e os clubes é que deveriam ter o direito de negociar o jogador. O Neymar foi vendido para o Barcelona. O Santos ficou com 20% e 80% ficaram com o pai do Neymar e o empresário. O clube formador não pegou nem 50% do passe.

História

Quem são os 10 melhores jogadores que atuaram com você?

Caramba. É complicado dizer 10 com tantos bons jogadores. É injusto citar esse número em 30 anos de carreira. Tivemos jogadores excelentes. Desde o início da minha carreira, Didi, Garrincha, Zito (no Santos), Coutinho (nos cinco grandes anos de Pelé), Tostão e Rivelino (na seleção de 70). Tem outros jogadores que não jogaram comigo mas foram excelentes jogadores, como o Zico. Poxa, tivemos o Falcão... É impossível citar 10, apesar de 10 ser meu número de sorte.

Qual a melhor seleção brasileira de todos os tempos?

Hoje, nós temos como registro a seleção de 70, considerada a melhor seleção de todos os tempos.

Futebol atual

Quem seriam os 11 melhores do mundo hoje?

Ah, difícil dizer, mesmo porque eu não tenho informação do mundo todo de grandes jogadores. É muito difícil nomear 11 jogadores.

E como seria o Rei jogando hoje com Cristiano Ronaldo e Messi? Páreo duro ou seria melhor ainda?

Eu acho que tem certas coisas que não dá para comparar. É uma coisa normal do ser humano e do público de fazer comparações. Falando na Argentina: Messi e Maradona. São duas épocas diferentes, os dois com o mesmo estilo, mas são de épocas diferentes. Eu sempre digo o seguinte: se perguntar para a minha mãe, ela vai dizer sempre que o Pelé é melhor. A outra coisa que eu digo: o Dondinho e a dona Celeste fizeram o Pelé e fecharam a fábrica. Não vai ter ninguém igual. [risos]

Quem você acha que deve levar o Brasileirão neste ano?

Neste início de ano, pelo que temos visto, o Corinthians é um time que parece estar bem estruturado e que pode chegar lá. Ainda tem o Atlético Mineiro, o Grêmio, o Flamengo. Como estamos no início de campeonato, é difícil fazer uma afirmação.

Legado

Que legado você quer deixar para os brasileiros fora do campo?

Desde o milésimo gol, venho tentando passar uma mensagem. Sempre na minha vida, em todos os momentos, eu tentei procurar passar coisas positivas para o jovem, para o povo brasileiro. Agora é uma oportunidade muito grande, porque acho que dá para a gente beneficiar muitos brasileiros com esse trabalho da Uninter [pós-graduações a distância na área esportiva].

Tem alguma coisa que você ainda não fez e gostaria de fazer?

Sempre estamos almejando alguma coisa. A minha angústia ainda é com o futebol brasileiro, com a administração do futebol brasileiro, com a falta de critério dos nossos governantes. Nós ainda temos muitas dificuldades no Brasil. A atenção às crianças. Infelizmente, hoje nós temos muito mais problemas do que quando eu fiz o milésimo gol. No milésimo gol, eram os trombadinhas, era um ou outro roubo. Agora, infelizmente, é assassinato, drogas, a criminalidade cresceu muito. O que eu gostaria de ver era uma mudança nisso. Esse ainda é o meu desejo.