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1ª maria-chuteira do Brasil fez poesia para conquistar o goleiro da seleção

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

02/10/2014 06h00

Em uma tarde carioca de 1913, entre aplausos frenéticos da multidão e o delírio de torcedores entusiasmados, conforme ela recordaria décadas depois, Anna Amélia viu pela primeira vez o homem com quem compartilharia o resto de sua vida. Com uma camisa e calção branco, com uma faixa também branca a amarrar a chuteira e uma fitinha roxa enrolada na cintura, o goleiro do América atraía a atenção e os olhares da maioria dos torcedores e, mais ainda, das torcedoras. "Anna Amélia foi a nossa primeira maria-chuteira", afirmaria um século depois uma de suas netas, a atriz Patricia Scott Bueno. 

“Fiquei grávida de emoção”, diria Anna Amélia sobre o momento em que Marcos de Mendonça, do alto de seu 1,87m, se aproximou para conversar com um grupo de garotas na arquibancada – ela no meio – no intervalo da partida.

Naquela época, o futebol era amador e elitista, e as primeiras marias-chuteiras, moças bem nascidas que se empolgavam com aquela nova moda europeia, escreviam versinhos para transmitir aos ídolos seu encantamento.

Anna Amélia começava assim um dos poemas que fez para o goleiro:

“Foi sob um céu azul, ao louro sol de maio / Que eu te encontrei, formoso como Apolo / E o meu amor nasceu, num luminoso raio, / Como brota a semente à umidade do solo.”

Não demorou para Marcos de Mendonça se apaixonar por aquela torcedora. Antes e depois das partidas, ele tomava um bonde e passava na frente da casa dela, na estrada da Tijuca, só pela minúscula possibilidade de vê-la na janela. Algumas vezes, conseguia; outras, não. Eram assim os flertes com as moças de família no início do século passado.

A sorte no amor transbordou também para dentro do campo, e o goleiro ajudou o América a ser naquele ano campeão carioca pela primeira vez. No ano seguinte, em 1914, Marcos atuou no primeiro jogo oficial da seleção brasileira, contra o Exeter City, da Inglaterra.

Uma briga com a diretoria do América o levou ao Fluminense, clube que ele defenderia por 12 anos e pelo qual torceria pelo resto da vida. Anna Amélia estava sempre lá para vê-lo jogar.

No final de 1915, eles decidiram transformar os flertes em casamento. “Durante quase três anos, foi o nosso idílio uma romântica inclinação sentimental, uma afeição sustentada apenas pela imaginação, incapaz de expansões e atitudes definitivas”, descreveu ela.

Casaram uma semana antes do Natal de 1917. Alguns meses depois, o pai dela, um rico industrial dono de uma usina siderúrgica em Minas Gerais, morreu. O goleiro foi convidado a assumir os negócios da família. Isso, além de alguns problemas físicos, o fizeram abreviar a carreira. Ainda teria tempo, porém, de ser tricampeão carioca pelo Fluminense e conquistar o título sul-americano com a seleção brasileira.

A primeira poeta do futebol

Anna Amélia Queiróz de Carneiro Mendonça é apontada por críticos como a primeira a trazer o tema do futebol à poesia nacional. Seu poema O Salto, que descreve a postura e os movimentos de Marcos de Mendonça durante um jogo, é considerado o primeiro do país a abordar o futebol.

A relação de Anna Amélia com o esporte já era antiga e nascera mesmo antes de ela conhecer o goleiro do América. Ela começou a jogar futebol antes dos 15 anos, no interior de Minas Gerais, depois de traduzir um livro de regras e importar bolas da Europa.

Ela ensinou o esporte aos filhos dos operários da fábrica do pai. Dizem que se irritava quando os moleques davam chutões para o alto para exibir força. “Ela achava que o futebol devia ser jogado no chão, com paciência e inteligência”, afirma Márcia Helen, sua neta, que conviveu com a avó até o fim de sua vida.

Ela também era uma mulher incisiva, idealista e, às vezes, explosiva. Feminista, defendia que as mulheres deveriam ter direito ao voto. Fundou a Casa do Estudante do Brasil, uma instituição para acolher no Rio jovens que não tinham condições de se manter na então capital do país.

Fluente em alemão, francês e inglês, foi tradutora de poemas estrangeiros. Ela deu à luz a futura crítica de teatro Barbara Heliodora, que ganhou da mãe seu primeiro exemplar de uma obra de William Shakespeare. Hoje, Barbara é maior especialista brasileira na obra do Bardo.

A fitinha roxa

Marcos de Mendonça foi o primeiro “ídolo” do futebol brasileiro porque encarnava todos os valores que o esporte carregava naqueles primeiros anos. Não gostava de sujar a roupa sempre muito branca, não gostava de violência, era sempre leal e recebia aplausos até de adversários.

Era conhecido como “O Fitinha Roxa” por causa do adorno que usava na cintura – a fita ajudava a segurar o calção em uma época em que o elástico ainda não havia sido inventado.  

Anna Amélia, dois anos mais nova que Marcos de Mendonça, sempre dizia à família que, caso morresse antes dele, gostaria de ser enterrada com a fitinha roxa, a mesma fitinha que o marido usara durante a carreira.

No final de março de 1971, ela morreu. Sua filha Barbara, suas netas Marcia e Patricia e a família toda reviraram a casa inteira atrás da fitinha para colocar dentro do caixão. Nunca a encontraram. Anna Amélia foi enterrada com uma foto do marido, vestido de branco – e de fitinha roxa.

A partir daí, e pelo resto da vida, Marcos de Mendonça só se vestiu de preto. Em casa, na rua, nos campos de golfe, seu esporte da velhice, e durante os jogos do Fluminense que ele via pela TV, nunca estava com roupas de outra cor senão a preta. Até 1988, quando morreu, o primeiro goleiro do Brasil jamais se despiu do luto pela mulher que o futebol lhe apresentou.