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"Copa não ajudará em nada", diz criadora de maior evento feminista russo

Irina Izotova criou a "FemFest" para debater igualdade de gênero ano passado e evento ganhou importância rapidamente - Denis Shchepinov
Irina Izotova criou a "FemFest" para debater igualdade de gênero ano passado e evento ganhou importância rapidamente Imagem: Denis Shchepinov

Daniel Lisboa

Colaboração para o UOL, em São Paulo

11/05/2018 04h00

“Minha vagina quer experimentar tudo!”. Dita em um palco em outras partes do mundo, talvez essa frase passasse despercebida. Mas, na Rússia, é tão significativa que foi escolhida pelo site “The Moscow Times” como título de uma reportagem sobre o evento feminista “FemFest”.

A afirmação está em diálogo da montagem russa da peça “Os Diálogos da Vagina”, encenada durante o evento realizado no último dia 21 de abril em Moscou. Apesar de estar apenas em sua segunda edição, o “FemFest” já se tornou o maior encontro do tipo no país.

Cerca de 1400 pessoas foram a um prédio no centro da capital russa acompanhar debates, performances artísticas e aulas sobre igualdade de gênero. Criado pela pesquisadora em estudos de gênero Irina Izotova, o encontro tem especial importância em um país onde o movimento feminista é incipiente e os dados sobre violência contra a mulher, assustadores.

De acordo com uma reportagem da BBC publicada ano passado, cerca de 600 mulheres são mortas dentro de suas casas a cada mês na Rússia. Um número impressionante, que pode ser ainda pior dada a pouca confiabilidade das estatísticas russas.

Diferente do Brasil, que tem diversos números sobre a violência contra as mulheres devidamente esquadrinhados e divulgados de tempos em tempos, no país da Copa do Mundo a névoa que paira sobre a questão é mais densa. E o aparato legal de proteção a elas é precário até para os padrões brasileiros.

Aqui, mesmo com a lei Maria da Penha, no exato instante em que esta matéria é escrita cerca de 27 mil mulheres já tinham sido agredidas física ou verbalmente desde o início do dia. O número é do “Relógios da Violência”, divulgados em tempo real pelo Instituto Maria da Penha. De acordo com os dados oficiais disponibilizados pelos estados, foram 946 vítimas de feminicídio no Brasil em 2017.

Na Rússia, as mulheres não possuem qualquer proteção oficial específica, como recentemente a violência doméstica foi simplesmente retirada do código criminal. Um marido que bate na mulher incorre apenas em “ofensa administrativa” e no máximo é obrigado a pagar cerca de 500 dólares (em torno de 1740 reais) de multa ou passar quinze dias na cadeia.

“Os maiores problemas que as mulheres russas enfrentam diariamente são violência doméstica e sexual e o machismo na mídia e na vida pública em geral”, diz Irina Izotova em conversa com o UOL Esporte. “A Rússia é um país machista como todo país tradicionalista e não temos nenhum tipo de educação sexual e de gênero apoiada pelo Estado.”

Irina explica que o grande objetivo da “FemFest” é exatamente promover este tipo de educação. “Tentamos mudar os estereótipos e mitos sobre o movimento feminista. Em última análise, queremos mostrar que o feminismo não é contra o homem, é a favor dos seres humanos”, diz a ativista.

Irina explica que tal mudança de imagem é necessária porque, apesar de muitas russas compartilharem ideais feministas, “não querem ser chamadas assim por pensarem que o feminismo é agressivo, que ser a favor da mulher significa automaticamente ser contra o homem”.

FemFest 01 - Denis Shchepinov - Denis Shchepinov
Encontro realizado em 21 de abril reuniu 1400 pessoas no centro de Moscou
Imagem: Denis Shchepinov
Ela acredita que, apesar de todos os problemas, o movimento feminista está sim ganhando espaço no país. Porém, ainda sem unidade, porque “há diversos grupos com focos em diferentes discussões e estilos e defendendo ideologias bem diferentes”.

Uma mulher que desempenha seu papel tradicional na sociedade russa e exibe padrões de beleza ocidentais. Para Irina, esta é a imagem da russa tão idealizada pelos homens, e a maioria das mulheres do país de fato procuram se adequar a ela.

“A maior parte delas procura por um homem forte capaz de garantir seu sustento. Por mim tudo bem, se essa escolha for feita livremente, e não porque é vista como a única possível. Mas também notei que o número de mulheres e homens cansados de desempenhar esses papéis está crescendo”, diz a ativista. “Liberdade de escolha é o nosso maior princípio. E essa liberdade é impossível sem uma análise consciente das alternativas.”

O UOL Esporte perguntou para Irina se a Copa do Mundo poderá, de alguma maneira, contribuir com a causa feminista na Rússia. Afinal, milhares de pessoas, teoricamente com diferentes visões de mundo, deverão aportar no país em breve. A ativista, porém, mostrou-se sem esperança sobre essa possibilidade.

“É uma competição com uma atmosfera fortemente masculina. Não acho que reunir um monte de torcedores, em sua maioria homens, vindos de todo o mundo, trará qualquer ideia de igualdade de gênero. No futebol russo, os torcedores tendem a uma visão tradicional e machista em relação a gênero.”

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