Topo

Copa 2018

Como o medo de ficar fora da Copa afeta jogadores e pode até causar lesões

Marcelo sofreu grave lesão em 2013 e mudou a sua forma de pensar por receio - Lucas Figueiredo/CBF
Marcelo sofreu grave lesão em 2013 e mudou a sua forma de pensar por receio Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

Luiza Oliveira

Do UOL, em São Paulo

02/05/2018 04h00

Quando o árbitro deu o apito inicial na estreia do Brasil na Copa do Mundo de 1986, o coração de Careca bateu forte. Não só pela emoção de estar no Mundial, mas por muito alívio. O atacante viu passar um filme na cabeça e pôde relaxar para fazer o que mais amava. Até aquele instante, Careca convivia com a angústia e o fantasma do medo. Quatro anos antes, viveu o drama de se lesionar e ser cortado a apenas quatro dias da estreia do Brasil na Copa de 82.

O medo, esse sentimento que atletas são obrigados a abominar, não atinge só Careca. Nas vésperas de uma Copa do Mundo, é comum principalmente para quem já passou por isso ou tem um histórico de lesões na carreira. Mas essa insegurança não só mexe com o psicológico, como prejudica os atletas e pode até causar lesões.

Careca conseguiu passar por isso. “Contusão em véspera de Mundial é um negócio muito delicado, muito difícil para superar. Eu tinha o sonho de disputar o Mundial, desde que o meu pai me acompanhava nos campos de várzea. Na preparação eu pensava: ‘será que vou ficar sobrecarregado? Colocar uma carga a mais talvez num amistoso?’ É um momento de equilíbrio, superação, autocontrole. Passou esse filme até o primeiro apito. No primeiro apito acabou todo o pesadelo, já estava dentro do Mundial, feliz, lutando”, conta ele que foi vice-artilheiro da Copa e maior goleador do Brasil com 5 gols.

Cada atleta se comporta de uma forma. O medo é legítimo. Historicamente, vários jogadores da seleção brasileira perderam Copas porque foram cortados com lesões como o próprio Careca em 82, Romário em 98, Emerson em 2002 e Edmilson em 2006. A pouco meses da Copa da Rússia, Neymar, Gabriel Jesus e Filipe Luis se machucaram e correram algum risco. Isso tudo passa na cabeça do atleta e é aumentado por quem tem já tem histórico no DM.

 “Normalmente, os atletas que passam por situações mais crônicas acabam somatizando, desenvolvendo um pouco do medo da lesão. Se já passou por lesões graves, essa situação se perpetua, traz alguns medos. Medo de se repetir. Até porque as lesões fazem parte da vida de um atleta, dificilmente ele está completamente livre”, conta o fisioterapeuta da seleção brasileira Bruno Mazziotti.

Em 2013, Marcelo, lateral esquerdo da seleção brasileira e do Real Madrid, sofreu uma fratura no pé direito semelhante a de Neymar. O episódio ficou marcado. E ele até mudou sua forma de pensar para tudo não se repetir. "Quando você tem essa lesão, passa um filme na sua cabeça, você aprende muita coisa nesse período, você trabalha mais, ligado em muita coisa que você não estava ligado antes. Pensa em muitas coisas antes de fazer, por exemplo, quando você tem uma lesão, é tão forte a dor, ficar fora, isso é tão chato, que você começa a pensar 'vou trabalhar aqui para não me lesionar, vou dormir cedo, vou melhorar a alimentação”.

Mas como o medo age na cabeça do atleta?

O medo serve para proteger o ser humano quando está em uma posição de ameaça. No caso do jogador, é comum querer se poupar, ‘tirar o pé’ em campo, às vezes até inconscientemente, para evitar uma lesão. Mazziotti viveu isso de perto com Renato Augusto na época de Corinthians. Ao fazer um trabalho minucioso para recuperá-lo, ele percebeu que Renato não chutava de perna esquerda. O medo era tanto que que ele pensava duas vezes antes de buscar uma bola na saída de campo ou entrar forte em uma dividida.

Renato Augusto treinou em Berlim neste sábado - Pedro Martins/MoWA Press  - Pedro Martins/MoWA Press
Imagem: Pedro Martins/MoWA Press

O inusitado é que o medo, ao invés de proteger, pode justamente ter o efeito contrário, pode prejudicar e até causar uma lesão. “Eu observava o treino e me chamava muita atenção o fato de ele não chutar de perna esquerda, ele tirava o movimento para transferir a função para a perna direita. Isso pode gerar uma sobrecarga na perna direita. A economia de movimento deixa de ser eficiente no aspecto técnico e gera um descompasso no outro lado do corpo”, conta.

O fisiologista Turíbio Barros trabalhou por 25 anos no São Paulo, na seleção brasileira e acompanhou Kaká em boa parte da carreira. Ele explica que o corpo humano tem movimentos automatizados pelo cérebro que devem ter execução natural. Do contrário, corpo e cérebro não entram em sintonia.

“O atleta tem uma espécie de automatismo motor. É um padrão de movimento estereotipado para diferentes tipos de situações que enfrenta. Quando tem padrão, não vai fugir disso, é uma maneira de se defender. Quando muda isso com o sentido de se defender, o cérebro não está acostumado a agir desse jeito, aí você pode fazer uma entorse ou machucar o joelho para tentar fazer um padrão de movimento diferente com o medo. Se tenta mudar, traz problema”, conta.

Além disso, a falta de confiança torna o atleta mais vulnerável e dá vantagem ao adversário na jogada. “Essa ansiedade é sempre prejudicial porque às vezes a tentativa de tirar o pé acaba sendo pior. O outro jogador vai com o vigor para fazer a dividida e quem está com receio tem chance maior de machucar. O medo é um fator predisponente para lesão porque prejudica a confiança. Se você tem confiança, você tende a prevalecer na jogada, dificilmente vai ser a vítima”, conta.

A coach para atletas de alta performance no esporte Nell Salgado, tem visão parecida sobre o tema. Ela tem larga experiência com atletas de futebol e fez toda a preparação da judoca Rafaela Silva no ciclo olímpico da Rio 2016 que culminou na medalha de ouro. Para ela, a falta de foco é o maior risco para causar uma lesão.

“O jogador, quando entra com esse medo, o foco dele está na lesão, no que pode fazer acontecer, ele está desconectado no que tem que fazer. Esse milésimo pode ser fatal. Quanto mais integridade você tiver no que estiver fazendo, entender a importância da execução do movimento, o teu corpo vai obedecer o comando do cérebro. A mente comanda o corpo”, analisa.

Copa 2010 ? Kaká - Reprodução/UOL - Reprodução/UOL
Imagem: Reprodução/UOL

Como vencer o medo

O medo traz prejuízos, mas vencê-lo ainda é um grande desafio. Principalmente porque envolve aspectos emocionais, subjetivos e a forma como cada um lida com a situação. O meia Kaká chegou à Copa de 2010 com dores no joelho e até realizou uma cirurgia após o torneio. O receio era inevitável e ele contou com a forte estrutura familiar que tinha como conta Turíbio.

Renato Augusto passou por um trabalho não só emocional, mas extremamente técnico ao lado de Mazziotti. Ele teve de recomeçar do zero e reaprender os próprios movimentos para ganhar confiança. “O atleta tem que pensar a decisão, a estratégia para dar bom passe para o seu companheiro. Já o movimento tem que estar automatizado. A gente teve que desconstruir e implementar um novo padrão de movimento, para criar um padrão mais assertivo. Isso passa por um processo de aprendizado motor até que se torne mais automático e não precise pensar. A confiança aumenta, o medo deixa de existir”, conta Bruno.

Já Careca na Copa de 86, por exemplo, se apegou ao seu passado e às dificuldades que enfrentou na carreira até chegar à Copa. “Sempre fui um cara de não jogar fora as oportunidades. A primeira foi no Guarani com 16 anos, tive um crescimento, um amadurecimento muito precoce. Com 15 anos fui para Campinas buscar o sonho do meu pai, com 17 fui campeão brasileiro. Essa convivência com treinadores mais experientes nos dava tranquilidade. Isso me deu maturação muito rápida. Eu fui com muita frieza, sempre fui um cara muito concentrado, levo a vida do jeito que ela é. Não preocupar com o jogo amanhã”, contou sobre como conseguiu suportar a pressão.

Esse recurso de voltar às origens é uma das metodologias usadas por Nell Salgado em seu trabalho de coaching de alta performance. Ela faz sempre questionamentos aos clientes para eles refletirem e entenderem se o medo faz sentido ou se é uma fantasia da mente. Mas não é fácil.

“No início é difícil. O atleta é construído para dizer que nunca tem medo, que é f... Se falar para o técnico que está inseguro, o técnico vai esculachar, dizer: ‘você é um m...’.", conta. "O medo é legítimo, mas o meu trabalho é trazer esse cara para enxergar outra interpretação sobre aquilo que ele está sentindo. Eu pergunto quais angústias você superou, como chegou até aqui, como chegou em um ponto bom da carreira. Se ele já se lesionou, pergunto, ‘por que o médico deu alta?’ ‘O que ele disse para você’?. Se o médico deu alta e você confia nele, é porque está curado. A vida não tem garantias, mas se o medo medir o que pode e o que não pode viver, as chances serão muito menores”, conta.

Copa 2018