Topo

Rodrigo Mattos

Futebol cria falsa sensação de normalidade mesmo com Maracanã vazio

19/06/2020 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Ao chegar ao Maracanã para cobertura de Bangu x Flamengo, no retorno do futebol brasileiro, fui direcionado a uma entrada diferente da habitual da imprensa. O acesso de costume é por onde entram e saem funcionários do hospital de campanha para combater o coronavírus. Eles deixavam seu turno ajudando pacientes, eu ia escrever sobre um jogo.

Em volta do complexo do estádio, havia uma grande quantidade de pessoas, não relacionadas nem ao jogo, nem ao hospital. Estavam se exercitando ou voltando para casa do trabalho. Uma parte de máscara, outra sem o equipamento. Fluxo habitual de pessoas no Rio visto desde a reabertura promovida por autoridades.

Me direcionei ao portão que nos foi destinado onde observei um protesto de torcedores contra a realização da partida e o presidente Jair Bolsonaro. Eram uns 20. A polícia só olhava.

No portão, sequer havia um segurança para abrir o portão de tão vazio. Tive de chama-lo para entrar em um outro ambiente, espaços de sobra em um Maracanã normalmente cheio. No credenciamento, apresentei meu teste positivo para anticorpo de coronavírus para ouvir o funcionário da Associação de cronistas esportivos do Rio, simpático, dizer que eu "era um dos sortudos". Nestes tempos em que ficar doente pode ser encarado como sorte caso você se cure.

Tomei um spray de álcool gel na cara no túnel de desinfeção, peguei meu Kit proteção e fui para a tribuna em elevadores e rampas vazias. O estádio estava escuro a 1h20 do início do jogo: acenderam as luzes por acaso pouco depois que entrei, imagino por economia. O tamanho do silêncio era inédito no Maracanã em dia de jogo desde que o frequento há uns 33 anos.

Das tribunas do estádio, longe dos colegas aos quais cumprimentei com discrição, vimos jogadores de Flamengo e Bangu entrarem de máscara e as tirarem para jogar. Tocava uma música alta de boate durante 20 min, meio desconectada do clima local. Houve um minuto de silêncio para o ex-jogador do Bangu Marinho e para o massagista rubro-negro Jorginho (este morto pela Covid). E aí a bola rolou.

Pois, a partir daí, os jogadores atuavam como de hábito, embora visivelmente fora de ritmo. Passei a comentar o jogo: "O Bangu leva cinco na linha de defesa", "O Flamengo tem seus movimentos coordenados como sempre, mas comete erros técnicos" ou "Gabigol fez belo lançamento para gol de Bruno Henrique". É meu trabalho, normalmente prazeiroso; desta vez, foi no automático.

Embora o estádio estivesse vazio, e eu com uma máscara incômoda, aquilo dava uma sensação de rotina, de normalidade. Um mundo muito longíquo da cobertura de coronavírus em que estive por três meses, contando mortes e tentando ouvir soluções de especialistas.

Os jogadores bem treinados, como os do Flamengo, estão acostumados a se desligar do mundo, focar no que está em campo. Jogavam assim, e Gabigol dizia para Bruno Henrique após um gol: "A dupla voltou".

É por isso que Bolsonaro insiste tanto na volta precipitada do futebol. A bola está, sim, inserida na sociedade, nos seus males e nos seus prazeres. Mas, quando o jogo começa, é como se ele se bastasse em si e esquecesse o restante. Dá a sensação de que o pior já passou mesmo que os óbitos continuem a se acumular (houve dois no hospital de campanha) e o caos ainda esteja instalado. Quem está longe não entende, mas, dentro dos 90 minutos, não parece haver epidemia.

Acabou a partida, e os jogadores se retiraram rapidamente. Completei o trabalho por mais meia hora e me dirigi a mesma saída tratando de desviar do banho de álcool gel. Só havia um segurança no portão, e os policiais de plantão saíam naquele momento. A avenida que circunda o Maracanã absolutamente deserta após meia hora de um jogo do Flamengo fez a realidade do mundo atual cair sobre meus ombros de novo.