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Renato Mauricio Prado

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Tragédia do Sarriá, 40 anos. Eu estava lá. E chorei

05/07/2022 20h56Atualizada em 05/07/2022 22h28

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Era a minha segunda Copa do Mundo. A primeira fora na Argentina, quatro anos antes - aquela em que o técnico Cláudio Coutinho disse que fomos os "campeões morais". Em 78, eu mal começara a minha carreira no Jornal do Brasil e não cobri a nossa seleção, em Mar del Plata. Fui designado para a sede de Rosário, onde acompanhei a equipe dirigida pelo carismático "Flaco" César Menotti, que acabou conquistando o título, contra a Holanda, após aquele famoso jogo dos 6 a 0 contra o Peru.

Em 82, eu já não era mais um novato. Trabalhava no Globo e, um ano antes, tinha coberto toda a vitoriosa campanha do Flamengo na Libertadores e o título do Mundial interclubes, no Japão. Acompanhara também a seleção de Telê nas partidas das eliminatórias e numa gloriosa excursão à Europa, em 81, quando o Brasil bateu inapelavelmente Inglaterra, França e Alemanha, em seus domínios. Como não chegar otimista à Espanha?

A equipe de Telê era um deleite para os olhos. Em cada coletivo, um show de talento e arte. E todo treino acabava em coletivo. Telê não dava muita importância a treinamentos táticos. Treinava fundamentos (uma obsessão dele) e depois queria bola rolando no campo inteiro quando, apito na boca, acompanhava titulares e reservas, cobrando, orientando e elogiando.

Muito se fala do quadrado mágico, formado por Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, mas naquele time havia talento de sobra em praticamente todas as posições. Leandro, Oscar, Luisinho, Júnior... O único que não chamava a bola de meu bem era o centroavante Serginho. Que tinha na reserva um cracaço: Careca que se machucou seriamente, em um coletivo em Mairena del Alcor, poucos dias antes da estreia, e acabou cortado. Roberto Dinamite foi chamado para o seu lugar, mas nunca foi utilizado.

É verdade que a estreia em Sevilha, contra a União Soviética, foi preocupante. O árbitro espanhol Augusto Lamo Castillo (que um ano antes estivera no Brasil e, acompanhado pelo dirigente da CBF, Mozart Di Giorgio, deliciara-se com as caipirinhas e as mulatas da Plataforma, na época, a mais famosa churrascaria e casa de shows do Rio) ignorou dois pênaltis escandalosos de Luisinho (no dia seguinte, o prestigioso jornal El País chamou o juiz de vergonha nacional) e Valdir Peres engoliu um frango monumental, saudado pelo público no Sánchez Pizjuán não com o tradicional grito de gol, mas com um sonoro "ooooohhhh".

Os golaços de Sócrates e Éder, já no segundo tempo, entretanto, garantiram a virada épica e a partir daí o time brasileiro deslanchou, com goleadas sobre a Escócia e a Nova Zelândia e um autêntico recital de futebol diante da Argentina, campeã de 78, então reforçada por ninguém menos que o jovem Diego Armando Maradona, em grande forma.

Por tudo isso, a confiança era enorme, quando do jogo contra os italianos, que tinham feito uma primeira fase medíocre, sem vencer nem sequer uma partida - empates com Peru, Polônia e Camarões - e ganhado dos argentinos por 2 a 1, num resultado considerado autêntica zebra. Detalhe: o empate bastava para classificar o timaço de Telê.

Aos cinco minutos, contudo, o primeiro gol de Paolo Rossi fez com que todos nos entreolhássemos, incrédulos, na tribuna de imprensa. Sócrates empatou, em linda jogada combinada com Zico, mas "Il bambino d'oro" voltou a marcar, ainda no primeiro tempo e, após o intervalo, nos deu o golpe fatal, seis minutos após Falcão empatar, com um golaço, que merecia ter sido o da classificação. Houve ainda a cabeçada de Oscar, no finalzinho, defendida por Zoff, em cima da linha e a partir daí o que era um lindo sonho se tornou um medonho pesadelo.

Lembro-me das cacetadas nas costas, desferidas pelos policiais espanhóis, enquanto entrevistávamos os jogadores, numa espécie de corredor polonês, entre a saída do vestiário e a entrada do ônibus da seleção (naqueles tempos, não havia zona mista), do quase atropelamento de Sandra, mulher de Zico, com seus filhos, tentando chegar aonde estava o marido e, por fim, da concorridíssima entrevista de um Telê Santana arrasado, mas aplaudido de pé por toda a imprensa estrangeira.

Recordo-me também de chegar à nossa "redação" num salão do Hotel Sarriá e do telefonema desolado que dei para o nosso editor Cláudio Mello e Sousa, na sede do Globo, no Rio. "Calma", disse-me ele. "Temos tempo de sobra e vamos fazer uma edição histórica, à altura dessa tragédia", aconselhou-me.

Foi quando chegaram, juntos, Sérgio Cabral (o pai) e Carlos Leonam, colunistas do Globo. Com uma garrafa de uísque nas mãos, Cabral a depositou com força numa das mesas, gritando: "Chegou a inspiração"! E todos bebemos uma dose e, em seguida, tratamos de nos sentar nas máquinas de escrever para produzir as muitas reportagens que compuseram a edição do jornal no dia seguinte.

Encerrado o trabalho, alguns foram diretamente para seus quartos (estávamos todos hospedados no mesmo hotel), outros ainda saíram para jantar e, sem apetite, preferi me dirigir ao elegante bar que ficava atrás da recepção. Estava lotado e, lá chegando, fui recebido de braços abertos pelo grande amigo mexicano Ramon Marques, jornalista que fora meu companheiro também no Mundial de 78, em Rosário, e na Espanha, como eu, cobria o Brasil para o seu jornal.

Para minha surpresa, ele me abraçou e começou a soluçar, num choro incontido. Como muitos dos estrangeiros que acompanhavam aquela Copa, era um fã apaixonado da seleção de Telê, Zico, Sócrates, Falcão, Cerezo, Júnior, Leandro etc.

- O Mundial perdeu a graça, "Hermano". Acabou pra mim, hoje - disse-me, segurando-me pelos ombros.

E aí fui eu que desabei num pranto doído. Nunca tinha chorado por futebol, até então. E nunca mais chorei. Mas a derrota daquela equipe mágica dói até hoje na alma. Mesmo 40 anos depois...

Não à toa, o Brasil de 82, como a Holanda de 74, são até hoje mais festejados pelos amantes do futebol do que algumas seleções que ganharam a Copa. Quem viu e viveu aqueles tempos, entende bem o porquê.