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Renato Mauricio Prado

Convicção de Domènec pode virar teimosia

Domenec Torrent comanda o Flamengo em jogo contra o Grêmio no Macaranã, em jogo do Brasileirão 2020 - Thiago Ribeiro/AGIF
Domenec Torrent comanda o Flamengo em jogo contra o Grêmio no Macaranã, em jogo do Brasileirão 2020 Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF

31/08/2020 04h00

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"É possível jogar e vencer com muitos estilos. Respeito todos eles. Mas joguei 11 anos de minha vida com o mesmo estilo e acho que temos aqui jogadores suficientes e de qualidade para atuar dessa forma. E vamos tentar jogar assim, de uma maneira também ganhadora, mas diferente (da utilizada por Jorge Jesus)".

As palavras sinceras de Domènec Torrent, após a vitória do Flamengo sobre o Santos, na Vila Belmiro, explicitaram sua inabalável convicção no chamado "jogo posicional", mas revelaram, ao mesmo tempo, uma preocupante limitação como técnico, mostrando-se avesso a adotar outros esquemas, que lhe possibilitem, por exemplo, aproveitar da melhor forma possível o vitorioso elenco que têm à mão. Em português bem claro: os jogadores é que devem se adaptar ao seu esquema preferido e não o contrário. Uma discussão e tanto.

Em quase 45 anos de profissão, pude observar de perto o trabalho de inúmeros treinadores. Entrevistei-os, antes e depois dos jogos, e com eles conversei bastante, nas mais diversas situações. De uma maneira geral, o que mais ouvi é uma espécie de antítese à postura do catalão que agora dirige o Flamengo.

De Cláudio Coutinho à Telê Santana, passando por Zagallo, César Menotti, Carlos Alberto Parreira, Luiz Felipe Scolari, Paulo César Carpegianni, Cuca e tantos outros campeões brasileiros, da Libertadores, do mundo, etc. escutei um mantra: o melhor esquema é aquele que permite aos seus jogadores e, consequentemente, ao seu time desenvolver o melhor futebol.

Foi assim que Zagallo escalou Piazza de zagueiro, Tostão de centroavante e Rivelino de ponta-esquerda, para abrigar na mesma equipe todos os craques de seu elenco estelar, em 70. Da mesma forma, Telê juntou Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, num quadrado que encantou o mundo, mesmo perdendo a Copa da Espanha. E o Flamengo, que com Coutinho foi campeão brasileiro tendo Júlio César Uri Geller, aberto na ponta-esquerda, acabou se adaptando e evoluindo, com Carpegianni, ao jogar sem pontas fixos, com Tita e Lico, atacando, defendendo e trocando de lado incessantemente.

É sabido que os principais craques do rubro-negro nas campanhas vitoriosas em 2019 e início de 2020 foram os quatro "avançados", como chamava Jorge Jesus: Arrascaeta, Everton Ribeiro, Gabigol e Bruno Henrique. Um dos maiores méritos do português foi justamente encontrar uma forma eficiente de fazê-los jogar juntos, extraindo deles todo o seu talento, em prol da equipe.

É fato que eles voltaram da paralisação causada pela pandemia em má forma - o próprio Jesus ressaltou isso, após a conquista do Carioquinha. Tudo bem, portanto, que agora fossem, eventualmente, para o banco de reservas - como tem acontecido. Desanimador, porém, é perceber que, dentro da tal filosofia "posicional" adotada pelo novo treinador rubro-negro, mesmo quando estiverem em plena forma, será cada vez mais difícil vê-los juntos em ação.

Isso porque Domènec não abre mão de armar seu time num 4-3-3 bem ortodoxo, com pontas abertos, praticamente fixos junto às linhas laterais (Jesus jogava num 4-4-2 altamente rotativo). Nem Arrascaeta, nem Éverton Ribeiro são pontas fixos. Na maioria das vezes, tudo indica, ou vai jogar um ou o outro - centralizado, no meio.

Em nome de seu esquema tático, Dome vai mexendo igualmente em outras posições. Na Vila Belmiro, escalou Tiago Maia, na vaga de William Arão, mas quem acabou deslocado para primeiro volante foi Gérson - e o desempenho do "coringa" caiu vertiginosamente.

Ao abandonar também a pressão na saída de bola do adversário, recuando a marcação para a sua própria intermediária, o técnico "abriu" o meio-campo e o sufoco que sofreu no primeiro tempo, por pouco não lhe foi fatal - não fossem as duas intervenções do VAR (corretas, mas milimétricas) e as boas defesas de Diego Alves, o Santos teria goleado, em apenas 45 minutos.

É justo registrar que, nessa etapa, o Flamengo conseguiu duas boas oportunidades para marcar (desperdiçadas por Michael), além do gol de Gabriel, todas as jogadas nascidas em contra-ataque. Mas o time de Cuca criou bem mais e teve amplo domínio do gramado.

No segundo tempo, com as alterações e a queda de produção do Santos, o Flamengo melhorou e, novamente, em contra-ataques, perdeu dois gols feitos, ambos com Gabigol. No final, o resultado foi excelente para o rubro-negro, mas a atuação nem de longe chegou a ser convincente.

Como bem observou Pedrinho (que bela revelação de comentarista!), no Troca de Passes do SporTV, sem aquela posse de bola avassaladora dos tempos de Jesus, a zaga rubro-negra fica muito mais exposta e jogadores como Filipe Luís e Gustavo Henrique estão sofrendo - Marinho deitou e rolou em cima deles, no primeiro tempo.

Torrent admitiu na entrevista pós-jogo que seu time ainda não está jogando nem 35% do que, ele acredita, poderá alcançar e pediu tempo para treinar (no mínimo, duas semanas, enfatizou). A torcida espera ansiosamente que os 65% restantes não demorem a chegar. Porque, me desculpem, mas essa cantilena de que "o time de Jorge Jesus acabou, não existe mais" é papo pra boi dormir.

Nove dos onze titulares daquela equipe supercampeã continuam no grupo, que se fortaleceu um bocado em relação ao de 2019. O mínimo que se espera é que voltem a jogar um futebol tão vistoso quanto eficiente. Pode até ser diferente. Mas tem a obrigação de ser ganhador. Ou por acaso o Flamengo deixou de ter o melhor elenco do país e do continente?

Em tempo: nada contra "rodar" o elenco - atitude saudável e necessária num calendário alucinado como será o deste ano. Mas trocar seis jogadores de um jogo para o outro, como foi feito da partida contra o Botafogo para a do Santos, e esperar que o entrosamento chegue logo é brincadeira...