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Renato Mauricio Prado

De Cláudio Coutinho para Jorge Jesus

Jorge Jesus, técnico do Flamengo, durante partida contra o Barcelona do Equador - Allan Carvalho/AGIF
Jorge Jesus, técnico do Flamengo, durante partida contra o Barcelona do Equador Imagem: Allan Carvalho/AGIF

08/06/2020 04h00

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Boca Maldita do Céu, 08 de junho de 2020.

Caríssimo Jorge Jesus, estávamos há alguns dias, Carlinhos, Carlos Alberto e eu, papeando sobre o nosso Flamengo e resolvemos lhe escrever. Como sou o mais afeito às letras (não me orgulho, mas fui o autor do malfadado manifesto de Glasgow, em 1973, quando atribuímos à imprensa o fracasso da seleção, numa excursão à Europa, e recusamo-nos a dar entrevistas), coube a mim a redação final que ora lhe enviamos.

Ao contrário daquele texto antigo, eivado de bílis e autoritarismo, este vai carregado de admiração, carinho e sincero desejo de ajudar. Afinal, somos fãs do seu belíssimo trabalho e todos, como você, campeões brasileiros, dirigindo o time mais querido do Brasil. Tive a honra de ganhar o primeiro título, em 1980; o Capita levantou o caneco em 1983, e Carlinhos venceu os dele, em 1987 e 1992. É verdade que nenhum de nós conquistou a Libertadores. Mas isso não invalida o alerta que ora mandamos.

O maior perigo que um time campeão de quase tudo, como o seu, corre no ano seguinte ao de tantas glórias não está mais nos adversários que enfrentará, mas no "fogo amigo" que passará a sofrer, dentro do clube (olho nos cartolas!) e, por que não dizer, do próprio elenco. A famosa fogueira das vaidades que, tenho certeza, você já enfrentou em outras ocasiões. No Flamengo, porém, alertamos, isso tem sempre uma dimensão bem maior. Gigantesca, eu diria.

Veja o meu caso. Após o fracasso na Copa da Argentina (hoje, reconheço que ainda não estava pronto para treinar a seleção), voltei ao Flamengo e ganhei o tricampeonato carioca (78, 79 e 79 especial) e, em seguida o Brasileiro, até então inédito. Dirigia um elenco estelar que, liderado em campo por Zico, praticava um jogo plástico e envolvente, quase revolucionário, graças a alguns conceitos que importei do futebol europeu e do basquete norte-americano, como "overlapping", ponto futuro e polivalência. Parecíamos prontos para um longo período de domínio, como é o caso da sua equipe neste momento.

Coincidência importante: naquele ano, assim como agora, logo depois do Brasileiro, a diretoria fez várias contratações para a campanha do inédito tetracampeonato carioca, que passou a ser nossa grande meta e era visto pela imprensa e pela torcida como uma "barbada". Chegaram Luís Pereira, Fumanchu, Carlos Alberto, Sivaldo e Lico. E das divisões de base não paravam de brotar jovens talentosos, como Leandro, Mozer e Vítor.

Para aumentar a euforia, ganhamos invictos a Taça Guanabara, que aquele ano foi disputada à parte do Estadual, e fizemos uma vitoriosa excursão à Europa, levantando os troféus do Ramon de Carranza e do Torneio Santander, na Espanha. Fomos ainda aplaudidos de pé, em Frankfurt, após colocar o Eintrach na roda. O otimismo era tal que o presidente Márcio Braga chegou a dizer que já mandara fazer as faixas do tetra!

Na volta ao Brasil, entretanto, surpreendentemente começaram os problemas. O primeiro: Luís Pereira já não era o grande zagueiro dos tempos do Palmeiras e do Atlético de Madrid, e sua lentidão começou a comprometer a zaga. Tive que barrá-lo, na metade do primeiro turno, e ele não ficou nem um pouco satisfeito...

O mesmo aconteceu com Paulo César Carpegianni, que também se mostrava mais vagaroso, por causa da idade, e vivia às voltas com problemas no joelho. Tal como Pereira, Paulo César, até então o capitão do time, não gostou de se sentar no banco, e isso começou a minar o ambiente, pois, ao contrário de Luisão, que mal chegara da Europa, ele tinha já três anos de clube e grande ascendência sobre o elenco.

Fato é que, do nada, aquele timaço começou a ratear diante de adversários infinitamente mais fracos, e as diversas trocas que tentei na formação que ganhara o título em 80 (Anselmo entrou no lugar de Nunes; Fumanchu, no de Tita; Vítor, no de Carpegianni; Marinho, no de Rondinelli...) não foram capazes de fazer a equipe recuperar o bom futebol e contaminaram de vez o nosso vestiário, me levando a ficar convencido de que somente uma grande reformulação seria capaz de recolocar tudo nos trilhos, em 81.

No Estadual de 80, perdemos o primeiro turno (tropeçando em Americano, Campo Grande e Bangu), e no segundo, após uma trágica derrota para o Serrano, em um campo esburacado e enlameado pela chuva forte em Petrópolis, praticamente nos despedimos do sonho do tetra. Perdemos com um gol de um desconhecido atacante chamado Anapolina! Que nunca mais fez nada na carreira...

Foi então que decidi preparar e mandar para o presidente Márcio Braga uma lista de dispensas que continha alguns nomes "pesados" que julguei não estarem mais rendendo e, pior, atrapalhando o meu trabalho. Na relação estavam Cantarele, Carlos Alberto, Rondinelli, Adílio, Carpegianni, Lico, Fumanchu, Nunes e Júlio César.

Em clima eleitoral (acabava, no fim daquele ano, o segundo mandato de Márcio Braga), alguém vazou a lista para a imprensa, a revelação caiu como uma bomba, e o candidato da situação e futuro presidente, Antônio Augusto Dunshee de Abranches, furioso, resolveu que o dispensado seria eu - que me transferi então para o Los Angeles Aztecs.

Processos semelhantes aconteceram com o Capita, em 1983, e com Carlinhos, em suas diversas passagens, quase todas muito vitoriosas, no comando do time. Na nossa "Boca Maldita", aqui em cima, concordamos que o ano seguinte ao das conquistas dos títulos mais importantes é sempre complicado, haja visto que Carpegianni, que ainda está por aí, ganhou em sequência Carioca, Libertadores, Mundial (81) e Brasileiro (82) e também não resistiu, caindo no meio do campeonato de 83.

Carlos Alberto entrou em seu lugar, e o que fez e sempre repete aqui nas nossas resenhas? Deu apenas uma "chacoalhada" no grupo, devolvendo-lhe a motivação. Como, aliás, de certa forma o próprio Carpegianni fizera com a minha equipe. Com méritos, ressalto, pois nem precisou realizar as dispensas que eu defendia.

Fato é, meu caro Jesus, que o seu time atual é excelente, e os reforços contratados, ao menos na teoria, colocaram em suas mãos o melhor elenco do país. Administrá-lo como um ourives que lapida as melhores pedras preciosas será o seu maior desafio. Nenhum dos atuais titulares, tenha certeza, gostará de, eventualmente, ser barrado por um dos novos reforços ou algum garoto talentoso da base.

Se na nossa época já era complicado, imagine agora, que os jogadores têm assessoria de imprensa própria, agentes inescrupulosos, parentes com voz ativa nas redes sociais... E ainda há os cartolas, sempre dispostos a tumultuar o ambiente no primeiro tropeço. Basta lembrar aquele que nunca foi muito favorável à sua contratação e, após aquela derrota por 3 a 0 para o Bahia, andou disparando piadinhas maledicentes em grupos de wathsapp de rubro-negros. Esse é o pior de todos. Fique esperto com ele!

Finalizando, digo que Carlinhos, Carlos Alberto e eu estamos ansiosos para rever o seu Flamengo em ação, pois o ano passado foi um puro deleite torcer por ele. O "Violino" brinca, dizendo que "jogador por jogador" os comandados dele, em 87, eram mais fortes que os seus. Da minha parte, confesso, fico pensando no que você poderia ter feito à frente do timaço de 81, que também considero um pouco superior ao atual, por conta de um cidadão chamado Arthur Antunes Coimbra.

Me despeço com a sincera torcida de que você consiga superar todos nós, ganhando mais um Brasileiro, a Copa do Brasil, outra Libertadores e o tão sonhado Mundial. Receba nossas vibrações mais positivas, enviadas daqui da "Boca Maldita Celeste".

Assinado

Cláudio Pêcego de Moraes Coutinho

P.S: "Boca Maldita" é um cantinho da Gávea, próximo a um dos bares do clube, onde sócios, conselheiros, torcedores e ex-jogadores se sentam para beber e jogar cartas, no final da tarde, comentando e "cornetando" as atuações do time, dos jogadores e do técnico do momento.