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Renato Mauricio Prado

Jesus e o fígado dos rubro-negros

Jorge Jesus, durante final da Libertadores entre Flamengo e River Plate - REUTERS/Henry Romero
Jorge Jesus, durante final da Libertadores entre Flamengo e River Plate Imagem: REUTERS/Henry Romero

25/11/2019 04h00

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Quando os olhos se abriram, o cérebro já estava a mil. Sonhos e pesadelos tinham povoado a sua mente em uma sucessão vertiginosa, típica de quem dormiu em estado de grande excitação.

- É hoje! - dispararam as cordas vocais. E, ato contínuo, a respiração começou a entrar em ritmo acelerado. Havia motivos de sobra. Após 38 longos anos, aquele corpo rubro-negro estava prestes a assistir a mais uma final de Libertadores do time de seu coração.

O jogo, entretanto, só aconteceria às 17 horas. Por conta disso, pouco depois do café da manhã, o fígado foi chamado a entrar na liça. Pela boca sedenta e ansiosa, começaram a descer sucessivos goles de cerveja gelada, para ajudar a diminuir a tensão pré-jogo.

A mil, o cérebro tentava abaixar os níveis cavalares de adrenalina com pílulas de raciocínio lógico misturadas com puro otimismo:

- Nosso momento é melhor. Time por time, temos mais craques. E o Mister, aposto, vai engolir o Gallardo.

Quando a bola, enfim, rolou, o nível de álcool no sangue já era alto. Os dez minutos iniciais, com o Flamengo pressionando o River em seu campo, ajudaram a manter a confiança, num corpo em estado inicial de torpor. De repente...

- Gol do River! O urro desesperado que escapou da garganta serviu como uma autêntica injeção de glicose na veia.

- Como Filipe Luiz, Arão e Gerson podem falhar num lance só? - vociferava, enfurecida, a boca, numa ação conjunta com a língua, a garganta e as cordas vocais. Que diabo de imagem era essa que os olhos estavam lhe mostrando? - revoltava-se.

E tome de cerveja. E cigarros (nervoso, fumava freneticamente). E salgadinhos, devorados um atrás do outro, fazendo o estômago embrulhar. Mas enjoado mesmo estava o jogo.

Aquela equipe envolvente e encantadora que eliminara, com autoridade, a dupla gaúcha, na Libertadores, e vinha espancando os maiores rivais, sem piedade, no Brasileiro, mostrava-se inerte, em Lima, incapaz de reagir diante de um adversário argentino que controlava as ações, marcava bem e anulava seus principais jogadores.

- Eu bebo e eles ficam tontos? - era o pensamento que bailava na mente inconformada com o que via em campo.

Intervalo de jogo, os rins sobrecarregados exigiram um tempo e foi no banheiro que, após jogar muita água fria no rosto, recuperou um pouco das esperanças:

- Jesus vai nos salvar. O papo no vestiário fará nossa equipe voltar diferente.

Até voltou. Mas as poucas chances que eram criadas pelos rubro-negros, acabavam desperdiçadas. E o corpo sofria, com murros na mesa, pontapés na poltrona e outras demonstrações de absoluto descontrole emocional.

- Como é possível, Arrascaeta, Gabigol e Éverton Ribeiro perderem, juntos, o mesmo gol? - era o pensamento que lhe martelava a cabeça, enquanto o tempo passava e a derrota parecia cada vez mais inevitável.

Nos 10 minutos finais, a cerveja foi trocada pelo uísque e aí mesmo é o que o pobre corpo começou a entrar em colapso. Engulhos a cada bola perdida, sobressaltos todas as vezes que os argentinos chegavam no ataque e quase uma síncope quando Gérson sentiu a panturrilha e pediu pra sair.

- Agora já era! - concluiu, jogado no sofá como um saco de roupa suja.

A visão, ainda que turva, se deparou, entretanto, com uma camisa 10. Era Diego que entrava, substituindo Gerson, mas em sua alucinação, o cérebro enviou ao restante do corpo uma memória poderosa.

- A camisa do Zico! Tal qual o corpo inanimado de Rodrigo Diaz de Vivar, o El Cid, seria a camisa do Galo capaz de virar aquele jogo?

O que os olhos passaram a testemunhar a partir dali se assemelharam mesmo a um milagre. Aos 43 minutos, na única jogada da partida em que o time de Jorge Jesus lembrou a si mesmo, Diego pressionou Pratto, na intermediária rubro-negra, Arrascaeta roubou-lhe a bola, acionou Bruno Henrique e este iludiu quatro argentinos, antes de tocar de novo para o uruguaio, que teve que se esticar todo para fazer o passe perfeito que Gabriel apenas empurrou para o fundo da rede.

Enlouquecido, o pobre corpo do rubro-negro teve até dificuldade de gritar gol. O urro saiu da garganta espremido com um engasgo, enquanto os olhos esbugalhados tentavam visualizar o replay, para se certificar de que era verdade. Arfante, percebeu que os pulmões, carregados de nicotina, estavam cobrando o seu preço.

Azar, a perspectiva de uma prorrogação com um time sem volantes e cheio de atacantes o deixou mais nervoso e acendeu mais um cigarro, como se não houvesse amanhã. Não foi preciso.

Diego, com a camisa dez, deu um passe de mais de 40 metros pra frente, a zaga do River se atrapalhou e Gabigol garantiu uma virada épica, heroica e improvável, pelo que o Flamengo (não) jogou em Lima.

Foram tantos berros, saltos e impropérios uivados ao ar que a pressão foi às alturas e o corpo, em êxtase, desfaleceu. Com dificuldade, as pernas e os braços o ajudaram a se levantar do chão, onde caíra, e se sentar, arfante, na poltrona em frente à TV.

Exultante, de lá não saiu até o fim da última resenha esportiva da TV. Com os olhos ardendo, a cabeça e vários membros doendo, mas com a alma leve, a gargalhar foi dormir sonhando acordado com a conquista do bicampeonato das Américas.

No dia seguinte, amanheceu disposto a tomar litros d´água e só "lavar as serpentinas" com uma cervejinha leve, assistindo ao desfile dos heróis, no trio elétrico, na Avenida Presidente Vargas.

Assim o fez. Mas, ao cair da tarde, o Grêmio derrotou o Palmeiras e o Flamengo conquistou antecipadamente o Brasileiro, somando dois títulos gigantescos no mesmo final de semana - algo inédito no futebol brasileiro.

Festa de novo! Pobre corpo. O Ministério da Saúde adverte: Esse time de Jesus pode fazer mal ao fígado de rubro-negro.