Topo

Mauro Cezar Pereira

Fragilizado, futebol praticado no Brasil não segura técnicos estrangeiros

Na despedida Jorge Jesus se emociona e diz: "O Flamengo será imparável" - GettyImages
Na despedida Jorge Jesus se emociona e diz: "O Flamengo será imparável" Imagem: GettyImages

21/07/2020 15h58

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

por Felipe de Moura Corrêa*

A passagem de Jorge Jesus pelo Brasil deixa, além de títulos e o melhor futebol jogado por aqui em anos, muitas lições. Mesmo antes do desembarque, o anúncio do português lançou um enorme holofote sobre a xenofobia latente em muitos de nossos profissionais. Jornalistas, técnicos e ex-jogadores não pouparam críticas.

Muitas delas rapidamente se provaram vazias e infundadas. Frutos, além do desconhecimento e preconceito, de uma ferrenha defesa de mercado a técnicos que se revezavam incansavelmente numa ciranda de pouca imaginação dos dirigentes, baixa eficácia e que resultou numa gradativa queda de qualidade do jogo praticado.

Ao longo da temporada, Jorge Jesus pulverizou recordes, encerrou jejuns, recuperou jogadores, colecionou títulos e desmistificou mantras táticos e estratégicos. Ganhou quase tudo com o que chamaram "time de índios", não priorizou competição, mesmo sem tantas alternativas no banco de reservas.

Juan Carlos Osorio que era técnico do São Paulo e saiu ao receber proposta para dirigir a seleção mexicana - Jorge Araujo/Folhapress - Jorge Araujo/Folhapress
Juan Carlos Osorio que era técnico do São Paulo e saiu ao receber proposta para dirigir a seleção mexicana
Imagem: Jorge Araujo/Folhapress

Venceu o brasileiro abrindo 16 pontos à frente do segundo colocado, tendo iniciado seu trabalho oito pontos atrás do então líder. Quantas vezes você ouviu e viu grandes clubes "escolherem" as Copas e abandonarem o Campeonato Brasileiro? Jesus venceu a Libertadores e nunca "brincou" nos pontos corridos. Nada disso, muito pelo contrário.

O principal legado, o de um parâmetro muito mais alto de exigência de jogo, já pôde ser visto desde o início dessa temporada. Atlético com Dudamel e Sampaoli, Internacional com Eduardo Coudet e Santos com Jeusaldo já sinalizavam os novos tempos. Não há mais clube de ponta no Brasil que ao menos não olhe além das fronteiras na hora de escolher seus comandantes.

Bons e maus profissionais há em todo lugar e a nacionalidade não garante nada, mas o leque do mercado se abriu de vez. Ao Flamengo de Rodolfo Landim, além de tudo que fez, Jesus deixa um ensinamento primordial ao escolher voltar para o Benfica: nenhum clube, por mais estruturado e atraente que seja, é capaz de se isolar do seu contexto.

A saída do treinador pode ter sido antecipada pela pandemia, mas o entorno oferece pouco. Quem pode garantir que após se ver diante do poderoso Liverpool, enfrentar Boavista e Volta Redonda pouco depois não colaborou para a decisão de sair? Seja pela Globo, SBT, MyCujoo ou FlaTV, enfrentar o River Plate sempre será mais atraente que bater o Madureira.

Reinaldo Rueda não voltou ao Flamengo depois das férias, preferiu a proposta da seleção chilena - Gilvan de Souza/ Flamengo - Gilvan de Souza/ Flamengo
Reinaldo Rueda não voltou ao Flamengo depois das férias, preferiu a proposta da seleção chilena
Imagem: Gilvan de Souza/ Flamengo

Calendários, muitos estádios vazios, estaduais longos e falidos, adversários pouco desafiadores, pouca visibilidade internacional. O cenário ainda é pobre. Não é inédito o fato de treinadores saírem do país na primeira oferta. Osório, Bauza e Rueda são apenas exemplos recentes da fragilidade que se enfrenta ao tentar manter no país profissionais com algum mercado no exterior mesmo com dinheiro em caixa.

A diretoria rubro-negra passa, às vezes, a sensação de uma autossuficiência que esbarra na arrogância e isso pode ser muito prejudicial ao clube que hoje vislumbra um cenário muito positivo. O Flamengo tem potencial e pujança para liderar boas mudanças no futebol brasileiro, desde que não se atrapalhe em iniciativas isoladas que ignoram tudo e todos.

Há um mínimo de contexto que precisa atender melhor ao coletivo. Uma fatia um pouco menor de um bolo mais gostoso e rentável certamente é mais interessante para todos. Caso aprenda essa lição, além dos importantes títulos recentes, o Flamengo pode conseguir o que outros clubes como São Paulo e Corinthians deixaram escapar. Não por falta de dinheiro à época, mas por soberba e más administrações: a tão sonhada soberania com consistência.

Edgardo Bauza pediu licença ao São Paulo, fez uma entrevista e foi treinar a Argentina - Xinhua/Rahel Patrasso - Xinhua/Rahel Patrasso
Edgardo Bauza pediu licença ao São Paulo, fez uma entrevista e foi treinar a Argentina
Imagem: Xinhua/Rahel Patrasso

O Benfica não é mais rico, atraente ou competitivo que o Flamengo hoje, mas o entorno oferece Portugal, Euro, calendários mais seguros pós-pandemia e sem estaduais no horizonte. Um protagonista de uma grande peça não prescinde de um bom teatro, um bom texto, plateia cheia e um bom cenário. Por isso é tão mais gostoso vencer a Libertadores que o Carioca.

* 41 anos, psicanalista e apaixonado pelo Flamengo e grato a Jorge Jesus