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Opinião

Peladas

POR LUIZ GUILHERME PIVA

1.
A pelada é num descampado sem fim. Sem linhas de fundo, sem traves, sem laterais.

Não se sabe quantos jogam de cada lado, nem se permanecem no mesmo time ou se mudam uma ou mais vezes.

Quando um time está com a bola, vai adiante, tocando, driblando, conduzindo, metros e metros, às vezes dezenas e dezenas de metros, ou mais, às vezes por horas, o outro time tentando o combate, recuando, marcando, e só quando toma a bola é que o fluxo se inverte, e aí faz tudo da mesma forma, espelhada, avançando, tocando, conduzindo, driblando, o outro time marcando, recuando, se afastando sem ter limites atrás, nem hora para parar, e também pode ocorrer de o ataque se dirigir para a direita ou para a esquerda, e tudo se repete do outro lado, porque não há direção certa, nem demarcação, nem orientação geográfica, basta escolher para onde se vai, reto ou em diagonal, ou até mesmo, repentinamente, voltando-se para o próprio campo, e rapidamente os outros, ou os mesmos, se reconfiguram como time adversário para marcar, tentar tirar a bola e escolher novo lado ou nova direção - que não existem - para atacar, e outro time se formar e tomar posicionamento.

Há quem se canse e saia. Ninguém vê. Outros entram. Ninguém vê.

Chove, amanhece, fica escuro, o sol racha, a poeira sobe e assenta.

E a pelada não para.

Como o descampado, ela também não tem fim.

2.
Esta outra pelada é demarcada pelas linhas do retângulo e tem traves.

Cada time fica no seu campo, mas, dada a saída, o que tem a bola tem que fazer gol contra de dentro de sua própria área, e o adversário corre para evitar. Conseguindo ou não, há outra saída, com a bola mudando de time, e agora este time tem que fazer gol contra e o adversário tem que correr desde o outro lado para evitá-lo.

Esta pelada tem um fim.

Quem fizer mais gols contra num dado tempo ganha.

Mas o placar, que é marcado na terra com um graveto por um garoto sentado num murundum, registra vitória numérica do outro time.

Assim, quem ganha perde e quem perde ganha.

Mas não é mata-mata. São pontos corridos.

E sempre tem revanche no dia seguinte.

Todos os dias.

3.
Outra pelada é jogada sem bola.

Sem times divididos.

Ficam todos misturados à espera de alguém iniciar uma corrida.

Aí os outros também correm.

Cada um escolhe para onde quer correr. Cada um finge a jogada que quiser. Faz quantos gols queira imaginar. Comemora abraçando quem quiser.

Quando um resolve parar, acaba.

E, se ninguém correr primeiro, não começa.

Fica sem ter pelada.

4.
E tem a pelada de um só.

Ele fica parado num campo vazio imaginando jogos diferentes.

Inventa formas de campos e tipos de peladas, com qualquer duração.

Vislumbra-as no ar, vibra com as jogadas, se diverte, ganha, perde, se emociona.

É a pelada dele.

Pode não ter pé nem cabeça.

Mas é dele.

E, sendo dele, ele a joga como bem entende.
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Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" - ambos pela Editora Iluminuras

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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