Minutos de silêncio
POR LUIZ GUILHERME PIVA
"Vendem-se: sapatos de bebês, nunca usados." (Ernest Hemingway)
Na vila, periferia descalça, limite do nada, ela, sozinha desde sempre no seu barracão, fazia faxina, cuidava de idosos, entregava mandados, o que precisasse.
E todo final de tarde juntava a molecada no terreno perto do lixão. Um punhado para cada lado, sujos, quase nus, barrigas pontudas, ossos vazando da costela, olhos acesos - a bola eram restos de outras que ela costurava.
Colocava-os primeiro para correr e se exercitar. Depois, explicava a importância da pelada, do respeito, da brincadeira, e que o jogo só terminaria quando o dia se apagasse.
Mas, antes do início, fazia o minuto de silêncio. Todos com as mãos às costas, cabeça baixa. Ela no meio, o rosto para o céu, de olhos fechados.
E então ficava assistindo até o escuro terminar o jogo.
Anos. Décadas.
Desde novinha até muita idosa.
Adultos que já tinham jogado ali voltavam e reviam-se nos novos meninos durante o minuto de silêncio e a correria.
Depois acompanhavam-na com os olhos singrando a noite até o barracão que ninguém nunca visitou.
No dia em que ela não foi e entraram, o corpo estava sereno na cama, as mãos cruzadas.
Dentro delas, a touquinha e os sapatinhos.
Muito velhos.
Mas sem uso.
_________________________________________
Luiz Guilherme Piva publicou "Eram todos camisa dez" e "A vida pela bola" - ambos pela Editora Iluminuras
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.