A insustentabilidade do modelo brasileiro de futebol

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POR RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO
Clubes de futebol foram beneficiados por um modelo legislativo arquitetado para evitar a intromissão do Estado autoritário e manipulador na organização do esporte. O inciso I do art. 217 da Constituição Federal criou, assim, um muro protetivo, que pretendia, após décadas de ditadura, atribuir à sociedade civil a prerrogativa organizacional e funcional da atividade esportiva.
Havia, naquele momento, a esperança, ou melhor, a convicção de que pessoas (de bem) saberiam reconduzir o país, em todos os planos, a partir de princípios que pareciam, em si, suficientes para materialização de propósitos discursivamente eloquentes.
O (compreensível) equívoco em relação ao modelo, motivado pelo momento político - e pela convicção nas intenções -, resultou no isolamento, dentro de associações esportivas, de castas que não tinham - e na maioria das vezes ainda não têm - propósitos ou atributos para desempenho de funções exercidas privadamente, mas que denotam incontornável interesse público.
Talvez tenha faltado, aos idealizadores do modelo, naquele momento de esperança, o realismo lindamente expressado pelo poeta moçambicano Jorge Rebelo, sobre a natureza das gentes (ou das revoluções): "não basta que seja pura e justa a nossa causa. É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós".
Pois, como ele escreve, ao assumir que "dos que vieram e conosco se aliaram muitos traziam sombras no olhar, motivos ocultos, intenções estranhas", deveria estar evidente que o propósito "para alguns outros era uma bolsa"; uma bolsa vazia, que esperavam enchê-la.
O mencionado inciso I do art. 217 da CF, baluarte do associativismo supostamente livre, gerou, ao contrário do propósito originário, um sistema de confinamento e autoproteção, que se expandiu entre as diversas estratificações clubísticas, titulares ou não do poder de mando (e de controle), e exacerbou a gana patrimonialista, raiz da crise sistêmica do futebol.
Eis o cenário: associados de clubes bajulam por privilégios; dirigentes digladiam pelo poder (e pelas regalias inerentes às posições) e se afirmam por intermédio da concessão de privilégios; e a torcida vive em estado de ciclotimia, oscilante entre a euforia (propagandística ou de resultado) e a resignação (decorrente do discurso dissimuladamente responsável, o qual, na maioria das vezes, encobre a incerteza ou a impossibilidade de títulos).
A esse cenário se soma a incompreensão (e a incompetência) estatal, que, dentro de seus limites constitucionais, movimenta-se oportunisticamente e, no mais, lava as mãos, como se o fracasso esportivo nacional não lhe pertencesse. O pertencimento, porém, é inafastável; tal estado de coisas decorre justamente da leniência generalizada com a irresponsabilidade, inclusive fiscal.
Exemplos não faltam.
Dois dos três maiores times do Estado de São Paulo, Corinthians e São Paulo, ilustram as preocupações. O primeiro ostenta em torno de 30 milhões de torcedores e, o segundo, 20 milhões. A soma resulta na impressionante cifra de 50 milhões de torcedores, maior do que a população de todos os países europeus, com apenas seis exceções: Rússia, Turquia, Alemanha, França, Inglaterra e Itália.
E como podem esses times, dotados de torcedores-consumidores perpétuos, e beneficiários de um sistema tributário paternalista, acumularem dívidas da ordem de R$ 3,5 bilhões?
Pior: dívidas dificilmente solucionáveis sem a realização de transações tributárias (portanto, à conta do contribuinte) e de movimentos bruscos, como o regime centralizado de execuções ou a recuperação judicial, que implicarão, necessariamente, algum tipo de socialização do problema com credores de todas as naturezas.
Mais: como podem as mazelas se multiplicar ao longo de anos, passando de grupo de interesse a grupo de interesse, e se intensificar a despeito da configuração interna de poder?
A situação não é privilégio (ou desvantagem) dos times paulistas; a crise se espalha por todas as regiões e dificulta (ou inviabiliza) a formação de uma "indústria" que deveria contribuir, inclusive orçamentariamente, para o desenvolvimento interno e para afirmação externa da Nação.
Certamente se usará, em contestação, o exemplo do Palmeiras, o único grande time do Estado em boas condições. Mas a excepcionalidade de sua situação serve para confirmar a regra, pois decorre de uma sequência de fatores não replicáveis: duplo mecenato, inaugurado com Paulo Nobre e seguido por Leila Pereira/Crefisa, e estabilização política provisória (decorrente da limitação estatutária à reeleição), viabilizada pelo exercício do poder econômico - além, evidentemente, da coleção de acertos administrativos da atual presidente.
Enfim, a propaganda, no atual estágio de crise do futebol, que passou a se inserir em uma rede global de negócios e interesses, não solucionará problemas materiais, econômicos e patrimoniais, mesmo que, eventualmente, se alcance, geralmente com o agravamento da crise, algum êxito esportivo. O modelo se esgotou. É preciso repensar, de forma sistêmica, o futebol no Brasil. E para o Brasil.
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