Cacá Diegues e a Carta de um Peladeiro Nostálgico ***

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Prezado Pedro Henrique,
Você está me pedindo e me fazendo lembrar de um dos momentos mais felizes e divertidos de minha vida.
Sempre adorei futebol e sempre joguei peladas com o pessoal de cinema e dos filmes que fazíamos.
Participava sobretudo das peladas no campinho mantido por Chico Buarque no caminho da Barra.
Ali, toda semana jogávamos uma, duas ou três peladas (em geral, segunda, sábado e domingo), com equipes de cinco jogadores e mais um goleiro, sorteadas ou escolhidas na hora. Muito de vez em quando, inventávamos um torneio de duração curta, onde jogávamos todos.
Um dia, fui surpreendido pela organização de um longo campeonato, com times do pessoal da casa e mais equipes convidadas.
Para minha surpresa e decepção, eu não estava escalado em nenhum desses times.
Passei uns dias implorando um espaço no campeonato, mas não fui atendido.
Confesso que nunca fui um craque, mas também nunca dei vexame e havia, naqueles times escalados, muita gente que eu considerava no mínimo do meu nível.
Andava pra lá e pra cá, tentando esquecer a decepção, quando um dia, no meio de uma manhã de pelada no campinho, descobri que João Nogueira, peladeiro da casa, estava na mesma situação que eu, agoniado com aquela rejeição absurda e injusta.
Depois de duas ou três conversas entre João e eu, já tínhamos a solução: a inscrição das equipes ainda não tinha se encerrado, decidimos inscrever um time nosso, com o qual disputaríamos o campeonato.
E eles não podiam barrar nosso time, se ele fosse formado por peladeiros da casa.
Nunca trabalhei tanto por uma equipe de futebol.
Mas, em pouco tempo, sobretudo com o trabalho de João e seu prestígio junto aos outros peladeiros, conseguimos formar um time de respeito, embora não assustador.
Alguns organizadores do campeonato ainda nos quiseram barrar, mas graças ao apoio de autoridades do evento, como Chico Buarque e Ruy Solberg, fomos autorizados a participar dele.
Em pouco tempo, escolhemos o nome do time, seu hino e grito de guerra.
A camisa teria que ser rubro-negra, por exigência de João, e assim foi que as mandamos confeccionar.
Na nossa estreia no torneio, entramos em campo com uma explosão de fogos de artifício (dizem que um dos nossos disparava seu revólver para o céu, misturando o barulho de balas com os fogos de artifício, mas até hoje nunca ninguém conseguiu provar nada).
Nesse primeiro campeonato, chegamos à final contra o Politheama, time da casa comandado por Chico.
Tomamos o primeiro gol, mas viramos para 3 a 1, sendo um gol de nosso atacante João Nogueira.
E, para decepção do Polytheama, nos sagramos campeões!
Fomos igualmente campeões no ano seguinte, no segundo campeonato da casa. Mas, dessa vez, a final não foi contra o Polytheama.
Depois do nosso bicampeonato, nunca mais o Raça & Simpatia participou de outro campeonato. Aliás, nem sei se houve outros campeonatos depois desses dois!
Fui fazer um filme fora do Rio e João tinha compromissos em outros estados.
Não sei nem que fim levaram as camisas gloriosas de nosso time.
Um dos grandes prazeres que eu tinha no Raça & Simpatia era jogar ao lado de João Nogueira.
Antes dos jogos começarem, íamos para a casa dele que não era longe do campinho.
Saíamos de lá mais alegres e animados para o embate que nos esperava.
João era um atacante classudo, desses que tratam tão bem a bola que ela não deseja nunca sair dos pés deles.
Eu fazia uma espécie de volante de pelada.
Ou seja, tinha que estar em todo lugar ao mesmo tempo, para compensar a falta de qualidade com empenho.
Além da muita qualidade, João também se empenhava.
Mas, a partir de certo momento do segundo tempo, era inútil querer contar com sua disposição, prejudicada por um cansaço que o impedia de se mexer.
Mas nada disso nos impediu de fazer do Raça & Simpatia uma equipe bicampeã, inesquecível na história da pelada carioca.
As lágrimas não estão me deixando continuar.
A nostalgia das peladas com João Nogueira me impede de lembrar ou dizer mais alguma coisa.
Espero que tenha ficado clara a importância do Raça & Simpatia e de seu capitão, o artilheiro João Nogueira, na história da pelada carioca do final do século XX.
Um grande abraço,
Cacá.
*Cacá Diegues, cineasta, volante voluntarioso do Raça & Simpatia, peladeiro do Polygram e outros times e apaixonado pelo Botafogo de Garrincha, Didi e Nilton Santos, que nos deixou hoje depois de criar mais de uma dezena de filmes imortais.
**Carta de um peladeiro nostálgico é uma fanzine digital, fruto de uma troca de e-mails entre Pedro Henrique e o cineasta Cacá Diegues sobre as suas memórias futeboleiras no campo do Politheama FC. Cacá foi um volante voluntarioso do Raça e Simpatia, time de pelada do Cacá, do sambista João Nogueira e outros artistas. Uma homenagem ao cineasta falecido hoje! Uma produção do Deriva dos Livros Errantes.
"Do barro viestes e ao barro voltará. A pelada é o mito original do futebol brasileiro".
Declaração Universal dos Boleiros, de Pedro Gueiros Motta.
Uma publicação independente do Deriva dos Livros Errantes. Conheça-nos: https://linklist.bio/derivaerrante
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