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Parou no tempo? Seleção brasileira ignora tendências do futebol mundial

A goleada por 4 a 1 diante da Argentina, em Buenos Aires, foi la gota que colmó el vaso — ou, em bom português: foi o dia em que o futebol brasileiro percebeu (de novo!) que está distante do primeiro nível mundial.

Culpar os jogadores tendo no elenco o melhor jogador de 2024 e o atual artilheiro da Champions League é, no mínimo, contraditório. Com menos matéria-prima, seleções mais modestas conseguiram entrar e sair com dignidade dos confrontos com os campeões do mundo.

Falar que a "a geração é ruim" sempre foi o caminho mais fácil nos momentos de vacas magras. Em dez anos, a foto da escalação brasileira da noite de terça-feira pode virar piada, "nossa, olha esse time", ou pode causar estranheza: "como fomos goleados com esse time?". O tempo (e os resultados) dirão.

O que dá pra dizer hoje, com um olhar para o cenário internacional, é que a seleção brasileira está isolada e ignora as principais tendências do futebol mundial. Seja por arrogância, por ignorância ou por desinteresse, a equipe pentacampeã mundial parou no tempo.

A lista de evidências é longa, mas vamos a algumas delas:

Marquinhos se lamenta durante jogo entre Argentina e Brasil nas Eliminatórias
Marquinhos se lamenta durante jogo entre Argentina e Brasil nas Eliminatórias Imagem: JUAN MABROMATA/AFP

1) O esquema tático engessado

A Itália, que canonizou o 4-4-2 durante décadas, enfrentou a Alemanha com três zagueiros; a Holanda, terra dos pontas, encarou a Espanha com Frimpong (um lateral/ala) e Gakpo (um meia) abertos pelos lados, num 4-5-1. A Argentina, campeã do mundo, povoou o meio-campo com cinco jogadores diante do Brasil.

Os três exemplos são desta Data Fifa e mostram que mudar o esquema tático de acordo com as circunstâncias, as peças disponíveis e o adversário é uma virtude: é repertório, não falta de rumo.

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Desde que Dorival Júnior assumiu a seleção brasileira, há um ano, quase nada mudou. Com Tite, seu predecessor mais longevo, a grande mudança foi a transformação de Neymar — de ponta em meia. O time nasceu no 4-3-3 contra o Equador em 2016 e morreu no mesmo sistema, seis anos depois, diante da Croácia.

Nos dois casos, os relatos são de que os treinadores "não gostam" de jogar com três zagueiros, por exemplo. Tite sempre bateu na tecla de que sua ideia de defesa era a de uma linha de quatro; Dorival nunca ensaiou uma mudança.

Koundé, da França e do Barcelona: exemplo de zagueiro que virou lateral
Koundé, da França e do Barcelona: exemplo de zagueiro que virou lateral Imagem: Jussi Eskola/Soccrates/Getty Images

2) A insistência nos laterais

O Manchester City de Pep Guardiola pode não ser o exemplo da excelência nesta temporada, mas conquistou a Champions League em 2022-23 e ditou uma nova tendência: o futebol sem laterais.

Na final, contra a Internazionale, eram quatro zagueiros de ofício (três na primeira linha, e John Stones jogando como volante), com Jack Grealish e Bernardo Silva como meias-abertos. A ideia era povoar o meio campo sem perder a consistência defensiva.

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As mudanças táticas dos últimos anos tornaram os laterais ofensivos — produto tão brasileiro quanto a jabuticaba — um item de luxo: quem quiser ter um, precisa compensar de outras formas. No Barcelona, a verve ofensiva de Alex Baldé pela esquerda é compensada por Jules Koundé, zagueiro de origem, jogando na lateral direita.

No contexto das seleções, os exemplos se multiplicam. A França também aproveita Koundé como lateral (ele pode virar um zagueiro em linha de três em contextos do jogo); a Alemanha faz o mesmo com Nico Schlotterback na esquerda, e tem Joshua Kimmich, volante de mão cheia, na direita.

A Croácia também entrou na onda: Josko Gvardiol, zagueiro que recuperou a bola que deu origem àquele gol fatídico em 2022, agora joga como lateral — posição que já ocupa no Manchester City, sob o comando de Pep Guardiola.

Diante da falta de laterais e da fragilidade defensiva, a seleção brasileira poderia caminhar nesta direção, ou pelo menos fazer testes. Há opções como Lucas Beraldo, que já jogou como lateral-esquerdo no PSG, e Éder Militão (atualmente machucado), que começou a carreira como lateral-direito e exerce bem o papel.

Pode não dar certo, mas diante de uma lacuna nas laterais, é uma tentativa. Outros clubes e seleções já testaram, e em muitos deles a tática funcionou.

Vinícius Júnior durante jogo entre Argentina e Brasil pelas Eliminatórias
Vinícius Júnior durante jogo entre Argentina e Brasil pelas Eliminatórias Imagem: JUAN MABROMATA/AFP

3) Os atacantes que não recompõem

O diagnóstico do desastre do super PSG de Messi, Neymar e Mbappé, nos bastidores do clube francês, é claro: "é impossível jogar com dois jogadores a menos na defesa". A crítica, na época, dizia respeito à colaboração nula do argentino e do francês na marcação. Neymar, quando saudável, era quem mais pressionava no trio.

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Aquele PSG sacramentou uma tendência no futebol mundial: a implicação defensiva é dever de todos, ainda que em menor nível. É difícil que um treinador peça que Mbappé ou Haaland percorram 40 metros perseguindo um volante, mas há pequenas ações que fazem a diferença — posicionar-se para bloquear uma linha de passe, por exemplo.

Desde que Neymar foi deslocado para o meio-campo, no ciclo de preparação para a Copa de 2022, a seleção brasileira sofre com um problema de compactação: ao ter quatro jogadores ofensivos (um meia, dois pontas e um atacante), abre-se um buraco entre os volantes e a linha ofensiva.

A forma mais óbvia de resolver o problema é exigir que os atacantes voltem para recompor, como fazem Rodrygo no Real Madrid e Raphinha no Barcelona. Só que, quando o rival consegue sair rápido com a bola e tem vantagem numérica no meio (como no duelo de terça) o desastre está servido: quem defende com sete ou oito jogadores está fadado a jogar sempre no mano a mano, com pouca margem de erro.

Matheus Cunha era o único meia da convocação, mas atuou como atacante contra a Argentina
Matheus Cunha era o único meia da convocação, mas atuou como atacante contra a Argentina Imagem: Daniel Jayo/Getty Images

4) A convocação sem variedade

Observar as listas de convocados das principais seleções do mundo é ver uma lista de jogadores de alto nível, mas também que oferecerem variações táticas.

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O banco da Espanha diante da Holanda tinha três tipos de meio-campistas (Aleix Garcia, Mikel Merino e Pedri); o do Brasil diante da Argentina tinha apenas jogadores de contenção — os bons Éderson e João Gomes.

É possível argumentar que há uma crise de meio-campistas criativos nascidos no Brasil, mas esta mesma comissão técnica colocou na pré-lista nomes como Andreas Pereira, Raphael Veiga, Lucas Moura e Oscar. Gostos pessoais à parte, os quatro representam perfis que Dorival não tinha no banco diante dos argentinos.

Estêvão não foi aproveitado nos jogos contra Colômbia e Argentina
Estêvão não foi aproveitado nos jogos contra Colômbia e Argentina Imagem: Heuler Andrey/Getty

5) O medo de renovar

Messi, Cristiano Ronaldo e Modric são exceções. O futebol de hoje é um esporte de jovens, e são eles quem vão mudar o jogo nos próximos anos. A Espanha ganhou uma Eurocopa com um zagueiro e um ponta menores de idade, Pau Cubarsí e Lamine Yamal, ambos do Barcelona.

Na França, o atacante Désiré Doué, 19, furou a fila dos veteranos e já ganha oportunidades; a Alemanha entregou as chaves da seleção a Jamal Musiala, 22, depois da Copa do Mundo; na Inglaterra, o lateral Lewis Skelly, do Arsenal, ganhou chance e fez gol aos 18 anos, com menos de 30 jogos como profissional.

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Há uma tendência cada vez maior em dar chances a quem é jovem e pede passagem. Mas, na seleção brasileira, existe uma barreira. Endrick, autor de gols em Wembley e no Bernabéu, nunca teve sequência como titular; Estevão, o melhor jogador ofensivo em atividade no país, teve zero minuto na Data Fifa.

Ao cuidar dos jogadores para "não queimá-los", Dorival Júnior perde a chance de pegar carona em uma das maiores tendências do futebol atual. Porém, é injusto personificar o comportamento apenas no atual treinador — Tite levou meses para dar espaço a Rodrygo e Vini Jr. durante o ciclo de preparação para a Copa de 2022.

Raphinha se envolve em confusão durante jogo entre Argentina e Brasil nas Eliminatórias
Raphinha se envolve em confusão durante jogo entre Argentina e Brasil nas Eliminatórias Imagem: Marcelo Endelli/Getty Images

6) A boca solta

Antes mesmo de Raphinha cair na armadilha de Romário e soltar o "porrada neles!" que virou motivação e agora foi eternizado como piada, o técnico Dorival Júnior já havia se auto imposto uma pressão enorme, com a célebre frase "Podem me cobrar, que nós estaremos na decisão da Copa do Mundo".

Esse tipo de declaração pode insuflar o afã patriótico de quem acha que o futebol ainda se ganha no grito, mas no mundo real elas têm mais efeitos colaterais do que benefícios. No alto nível, o estilo falastrão já é visto como anacrônico e anedótico.

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Campeão do mundo, o técnico Lionel Scaloni teria vários motivos para esquentar o duelo contra o Brasil na véspera, mas não o fez: preferiu ser diplomático. O futebol de 2025 também se ganha fora de campo, mas com preparação, estudo e aplicação tática, não prometendo uma final de Copa ou uma agressão a colegas de trabalho.

Opinião

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