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Blog da Amara Moira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Seguimos incapazes de perceber o caráter estrutural do nosso racismo

Torcedores do Fortaleza levantaram um mosaico no Castelão pedindo o fim do racismo - Reprodução/Instagram
Torcedores do Fortaleza levantaram um mosaico no Castelão pedindo o fim do racismo Imagem: Reprodução/Instagram

20/07/2022 04h00

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Diante das recentes discriminações sofridas por torcedores brasileiros em jogos da Libertadores, parecia até que o Brasil tinha deixado de ser um dos principais perpetradores de racismo para se tornar a vítima preferencial desse sistema de discriminação. Mas, para acreditar numa narrativa dessas, você precisaria ser uma pessoa branca completamente ignorante em debates raciais (e ignorância, num caso desses, é conivência com um sistema que te beneficia diretamente) ou com memória muitíssimo seletiva (o que se enquadraria na mesma situação anterior, diga-se de passagem).

E como, nas últimas semanas, não tem faltado denúncia de racismo seja dentro de nossos campos, seja nas nossas arquibancadas, voltou a ficar difícil sustentar essa narrativa de que o Brasil é uma vítima do racismo dos vizinhos malvadões. Sim, é preciso cobrar da Conmebol e dos demais países sul-americanos providências em relação a tais manifestações de discriminação, o que não se pode, contudo, é querer apontar demais o dedo para os coleguinhas como uma forma de fingir que aqui em casa as coisas estão bem resolvidas.

Não, não estão nada resolvidas e nem são acontecimentos anormais na nossa sociedade, como bem explica Silvio Almeida em seu livro "Racismo Estrutural" (editora Pólen, 2019, da coleção Feminismos Plurais). Isso porque, por mais que estejamos acostumados a pensar o racismo por uma perspectiva individualizante, "ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade", fornecendo "o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea" (p.21-22).

Em outras palavras, continua o professor, "o racismo —que se materializa como discriminação racial— é definido por seu caráter sistêmico. Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo de um conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas" (p.34).

Um fenômeno que expressa o funcionamento normal da nossa sociedade, portanto, e não o sintoma de uma patologia. A nossa sociedade é racista e esse racismo que a estrutura é explicitado nesses casos que têm ganhado os noticiários, o que não significa que, punindo os indivíduos e impedindo que eles se manifestem, teremos resolvido o problema, teremos transformado a estrutura.

Comentários do tipo "eu não acredito que ainda exista racismo em pleno sXXI", frequentes nas redes sociais, na mídia esportiva e nas tantas conversas sobre esses casos, revelam que ainda não nos demos conta do caráter estrutural que o racismo possui, de o quanto ele molda nossas subjetividades e existências. Nesse sentido, querer resolver o "problema" com punições exemplares, individuais, não passa de uma tentativa de combater os sintomas, essas manifestações visíveis que não nos permitem continuar acreditando no conto de fadas da democracia racial.

A sociedade livre de racismo, nessa perspectiva, seria aquela em que ninguém usa expressões racistas para insultar o coleguinha negro. No entanto, por mais odiosas que sejam essas práticas discriminatórias, elas são apenas a ponta do iceberg, e não podemos reduzir o debate sobre "racismo no futebol" a apenas elas. O texto já está ficando longo, então deixarei para outra oportunidade aprofundar esse debate.

Termino com um registro revelador de o quanto o racismo está incrustado em nossas mentes: falando sobre o caso de racismo desse final de semana, um comentarista esportivo branco (de quem gosto muito, por sinal, mas sermos pessoas amáveis, inteligentes e bem intencionadas não nos torna menos racistas também) revelou-se particularmente indignado por conta de os policiais não terem prendido o racista são-paulino, sendo que um deles era negro.

Isso é quase como dizer que, se fosse um policial branco, daria pra entender que o racista não fosse preso, mas sendo negro o policial, daí é inaceitável. Não bastasse as pessoas negras terem que lidar cotidianamente com o racismo da nossa sociedade, ainda é delas a principal responsabilidade por combatê-lo, entendem? E com isso a branquitude segue lavando as mãos e resumindo a sua colaboração no enfrentamento ao racismo a declarações bombásticas de repúdio nas redes sociais.