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Lito Cavalcanti

Os 60 anos de um ídolo eterno

Ayrton Senna ergue troféu após vitória na Fórmula 1 - Pascal Rondeau/Getty Images
Ayrton Senna ergue troféu após vitória na Fórmula 1 Imagem: Pascal Rondeau/Getty Images

60 anos hoje. Ayrton Senna da Silva nasceu no dia 21 de março de 1960. Morreu no dia 1º de maio de 1994. Morreu? Mesmo depois daquele fatídico dia em Imola, Ayrton Senna habita um mundo imaginário no qual ele continua como o maior campeão do automobilismo, mesmo que outros pilotos tenham somado mais títulos do que ele.

Foram três campeonatos mundiais, em 1988, 1990 e 1991. Poderiam ser quatro, não fosse a interferência do presidente da FIA, Jean-Marie Balestre, a favor de Alain Prost em 1989. O mesmo Prost que uma bandeira vermelha manteve como vencedor em uma corrida sob chuva em Mônaco.

Correndo pela pequena mas combativa equipe Toleman, Ayrton fazia naquele dia, três de junho de 1984, sua sexta corrida na Fórmula 1. Havia marcado pontos em duas delas, Kyalami, na África do Sul, e Zolder na Bélgica, sexto colocado em ambas. Resultado marcante em uma Fórmula 1 cujo grid contava com nada menos de 26 carros.

A corrida de Mônaco seria a primeira que Ayrton teria a chuva como aliada. Ele largou em 13º e, volta a volta, desmentia a crença de que ultrapassagens não cabem nas ruas de Monte Carlo. Na 30ª, ele estava colado no primeiro colocado, o potente McLaren-Porsche de Prost, que gesticulava para o diretor de prova, o belga Jacky Ickx, encerrar a corrida imediatamente, bem antes das 78 voltas previstas.

Assim foi feito. Na 32ª volta, a bandeira vermelha foi acenada exatamente quando o novato brasileiro despontava na reta dos boxes à frente do francês. Pelas regras do automobilismo, quando uma corrida é interrompida (definitivamente ou não) pela bandeira vermelha, anula-se a volta em que ela é acenada, a que vale é a anterior.

No pódio, a fisionomia de Ayrton mostrava seu inconformismo. Para todos, estava claro que se Prost fora socorrido pela intervenção de Ickx, aquela bandeira vermelha havia privado o mundo da F1 de uma atuação memorável, consagradora, de um novato. No dia seguinte, era Ayrton quem se destacava. Na alma dele, a confirmação de que os melhores dias já tinham ficado para trás, as corridas de kart.

NO KART, AS PRIMEIRAS LIÇÕES

Muitas e muitas vezes, Ayrton lembrou a competição pura, sem política daqueles dias. Lá não havia Ickx nem Balestre, eram apenas ele e os adversários. "Sem política, automobilismo de verdade, tudo se resolvendo na pista", disse ele mais de uma vez, perguntado sobre os melhores dias, os adversários mais duros.

O nome vinha quase de imediato, o inglês Terry Fullerton, seu companheiro na equipe DAP e seu arquirrival nos campeonatos mundiais de kart de 1978, 1979 e 1980. No primeiro, com 17 anos, ele tinha como credencial o título sul-americano de 1977. E deixou sua marca ao complicar muito a vida de Fullerton, sete anos mais velho e já com um título de campeão mundial. No primeiro ano, ele foi sexto colocado, um resultado espantoso para quem nunca havia corrido na Europa, enfrentando a elite mundial. Nos dois seguintes, apenas vice.

Em uma daquelas finais, Fullerton forçou uma passagem na última volta e tirou a vitória das mãos de Ayrton. Foi um lance contraditório, o novato sentindo que havia sido jogado para fora da pista, o inglês concedendo que fora uma passada de risco mas absolutamente leal. No dia seguinte, Fullerton conversava sem compromisso com seus mecânicos à beira da piscina do hotel. Senna levantou da cadeira em que ruminava sozinho sua frustração, jogou o adversário na água e virou as costas.

Ele sempre reagiu mal às derrotas, pior ainda quando se sentia vítima de injustiças. Foi em um desses momentos que o conheci mais de perto. Até o campeonato brasileiro de kart de 1976, sua fama se limitava aos kartódromos, era o novato que começava a ameaçar o estrelato de Walter Travaglini e Chico Serra, mesmo correndo na categoria júnior.

O campeonato foi no Maquimundi, um kartódromo espetacular construído no Rio de Janeiro por um esportista visionário, Luiz Cláudio Mattos. Senna não venceu, foi derrotado por um menino talentosíssimo, Eduardo Lassance. Ele não sabia conviver com qualquer resultado que não fosse a vitória.

E por isso ele lutou intensamente, ao ponto de dedicar toda sua vida não só ao automobilismo, e sim aos primeiros lugares. Já naqueles dias seu comportamento era diferente dos outros pilotos. Não brincava, mal conversava com os outros pilotos, seu tempo era todo dedicado a seu kart, às melhores regulagens, aos melhores acertos.

VITÓRIA, O ÚNICO RESULTADO ACEITÁVEL

Foi esse espírito que o fez se destacar em seu primeiro ano no automobilismo, 1981. Mudou-se para a Inglaterra e foi morar com a esposa Liliane Vasconcelos nas cercanias do autódromo de Snetterton. Ele disputou dois campeonatos de Fórmula Ford, o primeiro passo naquela época, correndo pela fábrica Van Diemen por indicação do ex-rival Chico Serra. No fim do ano, tinha conquistado os dois campeonatos, e suas atuações em pista molhada tinham chamado muitas atenções.

No fim daquele ano, o casamento acabou. Na vida espartana de Ayrton restava pouco tempo para qualquer outro tema que não fossem as corridas. Por pouco, não acabava também sua carreira. A mudança para outra categoria, a F Ford 2.000, exigia verbas mais altas, e a procura por patrocínio se revelou vã até quase o início da nova temporada. Ele só veio parcialmente, mas lhe possibilitou se tornar o maior vencedor do ano entre todas as categorias, com 22 triunfos entre os campeonatos europeu e inglês da categoria. Pela primeira vez, ele surgia na festa anual de premiação da FIA, envergando traje de gala.

Em 1983, sua determinação de vencer a qualquer preço se fez notar ao longo das 20 provas do campeonato inglês de F3. Ele venceu as nove primeiras corridas, mas Brundle reagiu e o título só foi decidido na última prova. Às turras com o inglês, Ayrton várias vezes se colocou em posições que forçavam o adversário a ceder sua posição ou bater. É famosa a cena dos dois carros amontoados ao lado da pista e seus dois pilotos a pé.

Ao fim do ano, realizou-se em Macau a primeira edição da Copa do Mundo de Fórmula 3, reunindo pilotos de todos campeonatos nacionais da categoria, então espalhada pelo mundo. Mais uma vitória de Ayrton, que àquela altura já conversava seriamente com equipes de Fórmula 1.

SUCESSO NO PRIMEIRO MOMENTO

Seu primeiro contato com a categoria máxima foi em Donington Park. Convidado pelo lendário Frank Williams, ele se adaptou rapidamente ao Williams-Ford e registrou um tempo melhor que o do principal piloto da escuderia inglesa, o finlandês Keke Rosberg, que havia sido campeão mundial em 1982.

Ao fim do teste, Frank Williams lhe ofereceu um contrato, mas sua opção principal era a equipe Brabham com seus potentíssimos motores BMW. Seu ingresso, porém, foi bloqueado por Nelson Piquet, que havia se sagrado campeão pela segunda vez e não queria rivalidade à sua liderança dentro da escuderia, que optou pelo italiano Teo Fabi, rápido mas não o suficiente para prejudicar o clima da equipe.

Sua única opção passou a ser a pequena Toleman com motor Hart, feito por um artesão visionário. A concepção era ótima, a execução carecia da verba necessária para desenvolver a versão moderna de um motor turbo, tecnologia que dava seus primeiros passos. Além da corrida no molhado em Mônaco, Senna voltou ao pódio com um terceiro lugar brilhante na Inglaterra, em Brands Hatch. Em Silverstone, outro circuito inglês, ele passou a brilhar já nas categorias de base. Foram tantas vitórias que os próprios ingleses passaram a chamar a pista de Silvastone, em referência a seu sobrenome paterno.

1985, O ANO DA CONFIRMAÇÃO

Daí para a frente, a história é conhecida. Seu primeiro triunfo, colossal, ocorreu em 1985, quando corrida pela Lotus sob dilúvio tão intenso que campeões como Alain Prost não conseguiam controlar seus carros - o francês chegou a rodar na reta, evidenciando seu desconforto sobre asfalto molhado.

Mesmo com o potente motor Renault Turbo, seus carros não eram páreo para as McLaren-Porsche de Prost, e o brasileiro terminou o ano na quarta posição depois de mais uma vitória, dessa vez na Bélgica, no lendário circuito de Spa-Francorchamps, que exigia grandes doses de talento e de coragem.

Depois de mais dois anos na Lotus, que lhe valeram dois terceiros lugares no campeonato e mais quatro vitórias, Ayrton ingressou na McLaren, que passou a contar com os motores Honda. Ele tinha a seu lado o francês Prost, tido como o melhor piloto da época. Das 16 provas, a dupla venceu 15, sete com Prost, oito com Ayrton, que conquistou seu primeiro título.

O INÍCIO DA RIVALIDADE

Foi o ponto inicial de uma rivalidade que se transformaria em hostilidade. Pelas regras da época, cada piloto devia descartar seus cinco piores resultados. Ayrton havia somado 94 pontos, mas descontava três quebras, um sexto e um quarto lugares, um total de apenas quatro pontos. Prost havia somado 105, mas precisou descartar apenas duas quebras e três segundos lugares, perdendo 18 pontos no processo. Resultado: Ayrton campeão com 90 pontos válidos contra 87 do francês.

Com o passar das corridas e das vitórias, a disputa com Prost mudara o ambiente da McLaren. A tensão crescente levou à colisão entre eles no GP do Japão de 1989. Era a penúltima corrida, e ao chegarem lá, Prost liderava por 16 pontos. Mas como descartava cinco, a diferença caía para 11 pontos com 18 em jogo nas duas últimas etapas. Se Ayrton vencesse as duas restantes, somaria 18 pontos e empataria com Prost. No desempate, o brasileiro seria campeão por ter mais vitórias (oito a quatro).

UMA MANOBRA VERGONHOSA

Mas o francês preferiu outro caminho, ajudado pelo presidente da FIA, seu compatriota Jean-Marie Balestre. O complô começou a partir do treino de classificação. Ayrton fez a melhor volta e conquistou a pole position com enormes 1s730 de vantagem sobre o francês. Para surpresa geral, o primeiro lugar no grid foi deslocado para o lado menos vantajoso, passando para o segundo a vantagem do melhor posicionamento.

Líder desde o início, Prost viu Ayrton se aproximar para tentar passá-lo na freada da chicane na 47ª volta. Ciente de que o brasileiro precisava vencer para manter as chances no campeonato, Prost mudou sua trajetória, forçando a colisão. O francês abandonou a prova no local, mas o brasileiro persistiu. Levou seu carro aos boxes depois de ser empurrado pelos bandeirinhas, teve o bico trocado, voltou à pista e venceu.

Minutos após a bandeirada, Balestre telefonou de Paris, onde assistira à corrida, e ordenou que desclassificassem o vencedor e entregassem o troféu a seu compatriota em uma decisão escandalosa evidenciada décadas depois no filme Senna. Até hoje Prost nega o que as cenas comprovam. Contra ele também uma entrevista de Balestre que, inconformado com a desatenção com que foi tratado por Prost depois de deixar a presidência da FIA, admitiu sua interferência nesse episódio.

A revanche veio no ano seguinte, 1990. Prost se recusara a dividir a McLaren com Ayrton e, preterido pelo chefe Ron Dennis, migrou para a Ferrari. Mais uma vez, os dois chegaram ao Japão disputando o título, mas em situações inversas. O brasileiro tinha 78 pontos e o francês 69, mas precisaria descartar dois. Dessa vez, era ele quem precisava vencer.

A HORA DO TROCO

Mais uma vez batido na prova de classificação, Prost voltou a se beneficiar da inversão das posições no grid para liderar nos primeiros metros. Ao chegarem quase colados na primeira curva, Prost tomou a trajetória interna e se colocou à frente de Ayrton, que não se deu ao trabalho de evitar a colisão. Era a forra, a vingança, a repetição do episódio em que ele havia jogado Terry Fullerton na piscina após se sentir prejudicado na disputa do mundial de kart.

Seu terceiro título viria no ano seguinte, absolutamente incontestável. Venceu as quatro corridas inicias, fechou o ano com seis, 24 pontos à frente do veloz mas irregular inglês Nigel Mansell, que mesmo batido fechou a temporada com cinco vitórias em seu Williams-Renault. Era o auge de sua popularidade, ressaltada no Brasil pela exibição repetida da bandeira nacional nos pódios do mundo.

O DECLÍNIO DA MCLAREN E O CANTO DO CISNE

1992 foi o ano que marcou o declínio inicial da McLaren. A adaptação do motor Honda ao carro era deficiente e mesmo vencendo em Mônaco (igualando o recorde do inglês Graham Hill de cinco vitórias no principado), na Hungria e em Monza, Ayrton terminou o ano em quarto, com menos da metade dos pontos do campeão Mansell.

Já decidido a sair da McLaren, que havia perdido o motor Honda e tinha de se contentar com um Ford de penúltima geração, Ayrton teve seu canto do cisne em Donington, o mesmo circuito em que, 10 anos antes, fez seu primeiro teste com um Fórmula 1. Ele havia começado o ano com o segundo lugar na África do Sul, batido pelo eterno rival Prost, e uma vitória consagradora em Interlagos.

Quarto colocado no grid, a mais de 1s6 da pole position da Williams-Renault de Prost, Ayrton aproveitou a chuva incessante para fazer aquela que é reconhecida como a melhor primeira volta da história da F1. Nela, ele superou a Benetton-Ford de Michael Schumacher e as Williams-Renault de Damon Hill e Alain Prost para conquistar a sua maior vitória. Ele repetiu o sucesso em mais três corridas: Mônaco (pela sexta vez), Japão e Austrália, fechando o ano em segundo, mas a 26 pontos de Prost.

Donington havia sido talvez o seu melhor momento e serviu também como argumento definitivo para trocar a McLaren pela Williams. Uma mudança que, mais uma vez, fez Prost sair de uma equipe para não ter de conviver com ele. Dessa vez optando pelo abandono definitivo, o que mais tarde reduziria a motivação do brasileiro.

UMA MUDANÇA MAL SUCEDIDA

A mudança, contudo, não trouxe o sucesso que se esperava. A grande qualidade dos carros da Williams era a suspensão eletrônica, que foi banida na última hora pela FIA. Sem esse artifício, os carros da Williams, desenhados pelo hoje consagrado Adrian Newey, se comportavam de maneira brutal, difíceis de controlar, muito distantes do que haviam sido no ano anterior.

Foi com esse carro que Ayrton viveu seu período final, o mais difícil de sua carreira. Autor da pole position nas duas primeiras etapas, Interlagos e Aida, no Japão, ele não marcou nenhum ponto. Abandonou o GP do Brasil depois de uma rodada quando tentava acompanhar Schumacher, que lhe tirara a liderança ao reabastecer seu Benetton-Ford em menos tempo, e foi jogado para fora da pista por seu sucessor na McLaren, o finlandês Mika Hakkinen, na primeira curva do GP do Japão.

De lá, a Fórmula 1 se deslocou para a Itália, mais especificamente para Imola, onde Ayrton tinha vencido em 1988, 1989 e 1991. Conquistou mais uma pole position, mas acusou o golpe do fortíssimo acidente sofrido na sexta-feira por Rubens Barrichello, a quem tratava como um afilhado, e o que custou a vida do austríaco Roland Ratzenberger.

O FINAL

Na sexta volta, a primeira após a interrupção causada por um acidente de grandes proporções já na largada, a barra de direção da sua Williams se rompeu, o carro saiu da pista, se chocou fortemente com o muro. Naquele momento, chegou ao fim a carreira mais brilhante da história da F1.

Quando atingiu o status de melhor piloto de sua época e se viu livre das amarras convencionais, Ayrton se permitiu revelar sua intensa religiosidade com declarações nem sempre respeitadas. Como quando afirmou ter visto Deus durante uma prova de classificação no Japão. Também sua vida amorosa era acompanhada de perto. Os romances com a apresentadora de TV Xuxa Meneghel e com Adriana Galisteu eram esmiuçados nas colunas das revistas especializadas.

Ir a um cinema ou a um restaurante eram lazeres proibidos para ele e quem o acompanhasse, tamanho o assédio do público e da imprensa. Isso fez com que seus momentos de relaxamento fossem no Japão, país tradicionalmente respeitoso, e os Estados Unidos, onde a Fórmula 1 não tinha tantos seguidores.

Sério, disciplinado, persistente, Ayrton era o oposto do brasileiro típico. Isso, contudo, nunca diminuiu o fervor com que os brasileiros acompanham pela TV todas as voltas de suas corrida, à espera do momento mais emocionante: a exibição da bandeira nacional, desfraldada do alto dos pódios mundo afora.

Eram tempos difíceis, de recessão, inflação estratosférica desvalorizando os ganhos dia a dia. As manhãs de domingo traziam alegria para aqueles dias de sofrimento. Com Ayrton Senna, o herói nacional, o orgulho de ser brasileiro revivia, ressurgia a certeza de que o esforço era o único caminho. Ver a vitória de um compatriota sobre o resto do mundo gerava a certeza de que tudo estava ao alcance de quem lutava. Saía do peito o grito de "Viva o Campeão".

60 anos depois, resiste a certeza de que Ayrton Senna nunca morrerá.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado, os motores usados pela Williams em 1993 eram Renault e, não, Honda. O erro foi corrigido.
Diferentemente do informado, Senna seria campeão da temporada 1989 se vencesse as últimas duas etapas, no Japão e na Austrália. O erro foi corrigido.
Diferentemente do informado, o motor da McLaren em 1988 era Honda e, não, Porsche. O erro foi corrigido.
Diferentemente do informado, o terceiro lugar de Senna no GP de Inglaterra em 1984 foi no circuito de Brands Hatch e, não, Silverstone. O ero foi corrigido.
Diferentemente do informado no primeiro parágrafo, Senna morreu em 1994 e, não, em 1964. O erro foi corrigido.