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Lito Cavalcanti

Hamilton sai da Rússia com a vitória que a Ferrari desperdiçou

Lewis Hamilton com o troféu do GP da Rússia - Maxim Shemetov/Reuters
Lewis Hamilton com o troféu do GP da Rússia Imagem: Maxim Shemetov/Reuters

30/09/2019 14h02

Enfim, Lewis Hamilton e a equipe Mercedes voltaram a vencer. Ambos viveram um dia de glória na Rússia, mas devem agradecer esse sucesso à Ferrari. Um conjunto de erros, de avaliações fora da medida e a evidente falta de controle sobre seus dois pilotos deram aos adversários uma vitória que, em nenhum momento anterior, esteve ao alcance deles.

Com um carro nitidamente superior, capaz de deixar o melhor Mercedes a mais de quatro décimos de segundo na prova de classificação, a Ferrari superestimou as possibilidades de Lewis Hamilton e subestimou o ânimo combativo de seus pilotos. Imaginou um acordo de não agressão prévio à largada que nunca teve a menor chance de ser obedecido por Sebastian Vettel - uma breve consulta a seu histórico nos tempos que guiava pela Red Bull teria sido suficiente.

Para relembrar o caso: em 2013, no GP da Malásia, Vettel ignorou a orientação de não ultrapassar o companheiro Mark Webber em um episódio que se tornaria conhecido como o caso Multi 21. Esse era o código que orientava os pilotos a passar o mapeamento do motor para um estágio mais conservador e a manter suas posições até o final. Vettel ignorou as instruções, ultrapassou Webber e venceu a corrida.

Na semana que se seguiu, seus advogados fizeram chegar às mãos do chefe da equipe, o inglês Christian Horner, um calhamaço de argumentos legais que deixavam clara a discordância de Vettel quanto a uma eventual punição. Que de fato nunca veio, o que acabou por levar Webber a se retirar da Fórmula 1 no fim da temporada.

Anos mais tarde, Horner explicou publicamente por que Vettel agira daquela forma. Na última etapa de 2012, o GP do Brasil, Vettel tinha 13 pontos de vantagem sobre Fernando Alonso, que precisava pelo menos do terceiro lugar com o alemão no máximo em 10º para vencer a disputa pelo título. Na corrida, Alonso era segundo e seu companheiro na Ferrari, Felipe Massa, era terceiro, seguido por Webber e Vettel.

Ao tentar superar Webber para assumir o quarto lugar, que lhe garantiria o título mesmo se Alonso vencesse, Vettel foi espremido contra o muro e perdeu a quinta posição para Nico Hulkenberg. Ao fim da prova, Alonso foi segundo e Vettel, em sexto, sagrou-se campeão - mas a atitude de Webber nunca foi perdoada nem esquecida. A vingança veio meses mais tarde no episódio da Malásia.

Ainda uma consequência do Q3 de Monza

Esse parece ser o mesmíssimo sentimento despertado pela recusa de Charles Leclerc, que não lhe retribuiu o vácuo que Vettel lhe dera e servira para o monegasco garantir a pole position do GP da Itália. Na ocasião, Vettel obedeceu às ordens da Ferrari ao ajudar Leclerc na primeira tentativa de estabelecer um bom tempo - na certeza de que Leclerc também seguiria a orientação. O que não aconteceu.

Antes da largada do GP da Rússia, Laurent Mekies, o diretor esportivo, e Mattia Binotto, o capo da Ferrari, combinaram uma estratégia de troca de posições entre seus pilotos, temendo um mais do que improvável ataque de Lewis Hamilton. Com pneus médios, de maior duração e menor aderência, o principal piloto da Mercedes tinha mínimas - se é que tinha alguma - possibilidades de ameaçar a vantagem que a pole position dava a Leclerc. Quando muito, resistiria a um eventual ataque de Vettel, terceiro colocado no grid. E até isso parecia muito difícil diante do fato das duas Ferraris largarem com pneus macios, que dão mais tração e aderência do que os médios.

Como planejado, Leclerc largou bem e Vettel ainda melhor. Sem tanta tração, e ainda por cima largando no lado mais sujo da pista, Hamilton foi batido por Vettel nos primeiros metros. Já em segundo, o alemão se beneficiou do vácuo gerado ao longo dos quase mil metros para tomar a ponta antes da entrada da curva Dois. Daí para a frente, impôs um ritmo que o festejado Leclerc não conseguiu acompanhar. Quando recebeu a ordem de trocar posições, a reação de Vettel mostrou que ele não estava disposto a se sacrificar antes de deixar claro que é um tetracampeão e que não vai entregar a posição de primeiro piloto sem luta.

Para passar é preciso estar perto

"Ele está muito longe de mim, fale a ele para se aproximar mais", foi a resposta. De fato, Leclerc estava a um segundo e meio de Vettel, e se o líder diminuísse a diferença estaria também desperdiçando a vantagem construída sobre a Mercedes de Hamilton. Vantagem que valeria muito quando a maior durabilidade dos pneus médios possibilitasse à Mercedes andar mais rápido que as Ferraris.

Cansado de ver sua incapacidade de controlar seus pilotos publicamente, Laurent Mekies disse a Leclerc que a troca de posições ficaria para depois. A resposta foi ácida: "Eu fiz o que me foi pedido, vocês me colocaram atrás dele. Por favor, gerenciem a situação". Leclerc queria a devolução imediata. E a Ferrari sucumbiu a seu desejo.

A solução escolhida foi chamar Leclerc para trocar pneus bem antes de Vettel. Isso subentendia que a equipe estava mais interessada em corrigir o que ela interpretava como injustiça em relação a Leclerc. Em paralelo, ela dava sinal de que se posiciona do lado dele na disputa com Vettel. Trazer o monegasco para os boxes antes do alemão contrariava uma regra básica do "manual do estrategista de F1": dar prioridade a quem está na frente.

Tudo, na verdade, estava sendo ditado pela ansiedade de calar as incômodas queixas de Leclerc. A corrida ainda não havia chegado à metade, haveria tempo mais do que suficiente para ambos se distanciarem de Hamilton e, só então, trocarem posições. Mais tarde, Binotto, de forma política, mas não convincente, diria à imprensa que a chamada antecipada de Leclerc foi porque seus pneus já estavam muito desgastados e Hamilton começava a se aproximar - afirmação desmentida pela cronometragem.

Disse ainda que não havia intenção de forçar a troca de posições parando Leclerc na 22ª volta e mantendo Vettel na pista por mais quatro voltas. Isso apesar do piloto alemão ter comunicado à equipe que seus pneus traseiros já não tinham mais aderência exatamente na volta em que Leclerc entrava nos boxes.

Em outros tempos, diria-se que o castigo veio a cavalo - no caso, veio com o motor híbrido. Depois de ter seus pneus (e sua posição na pista) trocados, Vettel voltou à pista três segundos e meio atrás de Leclerc, e logo informou à equipe que tinha perdido o MGU-K, o sistema de recuperação de energia elétrica através das frenagens. O procedimento normal desses casos é o piloto trazer o carro para os boxes, onde um mecânico, equipado com material isolante, descarrega a eletricidade do veículo e tudo volta ao normal.

A título (ou pretexto) de manter a segurança, a Ferrari o orientou a parar o carro na pista. A ordem foi recebida com certa (e cabível) surpresa por Vettel. "Vocês estão falando sério?", perguntou. Ele já estava na curva 15, perto da entrada dos boxes, que é antes da 18. Segundo a equipe, foi uma medida de precaução. Isso, porém, não diminui o prejuízo. O carro parado ao lado da pista, mesmo que a distância relativamente segura, provocou o acionamento do Carro de Segurança Virtual, procedimento que impões aos pilotos um tempo de volta 40 por cento superior ao de corrida.

Foi aí que a Mercedes começou a vencer. Mesmo em um discreto terceiro lugar, Hamilton havia se mantido em posição de aproveitar a eventual intervenção do Carro de Segurança, virtual ou real. Promovido ao primeiro lugar pelas paradas de Leclerc e Vettel, Hamilton aproveitou a queda do ritmo dos adversários para fazer a chamada troca gratuita de pneus. A parada de Leclerc ocorreu enquanto os carros na pista viravam na faixa de 1min38s e 1min19s, enquanto nas de Hamilton e Bottas ocorreram com Leclerc virando na faixa de 2min15s.

Essa diferença bastou para que Hamilton voltasse à pista ainda à frente de Leclerc , que ainda se mantinha à frente de Bottas. A aposta da Mercedes tinha dado certo, a mesma que a deixara fora do pódio de Singapura. Na ocasião, ela tinha mantido Hamilton na pista por muito mais tempo que os pilotos da Ferrari, à espera de um Carro de Segurança que lhe permitisse trocar pneus sem perder posições, mas ele só veio depois de Hamilton ser obrigado a parar em ritmo de corrida. Dessa vez, ele veio no momento mais do que ideal. Hamilton em primeiro com pneus macios, Leclerc em segundo com os médios, seguido de perto por Bottas também com macios - e só faltavam 20 voltas para a bandeirada.

A situação viria a se tornar mais crítica quando o Carro de Segurança passou de virtual para real por causa de uma batida da Williams de George Russell na barreira de pneus. No virtual, os carros reduzem a velocidade mas, como todos desaceleram, as distâncias entre um e outro são mantidas. No real, todos se agrupam, e isso induziu a Ferrari a um erro inexplicável: chamar Leclerc de volta aos boxes para colocar pneus macios, se igualando às Mercedes. Com isso, permitia a Bottas tomar o segundo lugar de Leclerc, abrindo mão de um fator altamente valorizado: a posição de pista.

Muitas e muitas vezes já se viu um carro mais veloz perder voltas e voltas atrás de outro mais lento e não conseguir passar. Foi exatamente isso que ocorreu. De fato, a Ferrari de Leclerc era potencialmente mais rápida que a Mercedes de Bottas, mas não o suficiente para recobrar a segunda colocação desperdiçada pela decisão de parar para trocar os pneus médios pelos macios. Coube a ele e à equipe um terceiro lugar em uma prova em que a vitória esteve em suas mãos.

Essa foi uma das duas decisões inexplicáveis com que Binotto se defrontou ao fim da corrida. Seus esforços, como seu constrangimento, eram evidentes, mas de nada serviram. E ele ainda tem pela frente uma situação difícil de contornar. A soma de todos esses fatos isolaram Vettel dentro da equipe, e a história do alemão mostra que, quando acuado e isolado, ele se torna muito mais forte, mais competitivo, mais articulado.

E nessa guerra interna, Vettel tem a apoiá-lo o fato de ter-se mostrado superior ao companheiro enquanto esteve presente na corrida. Superior ao ponto de, em dado momento, ter aberto uma vantagem superior a quatro segundos em condições de igualdade e em um momento em que estavam ambos com pneus iguais e a mesma carga de combustível. Sim, Leclerc é bem mais rápido em uma só volta, e tem mostrado isso enfaticamente nas provas de classificação. Mas essa foi a segunda vez em duas corridas em que ele largou na pole position e viu Vettel lhe tomar a vantagem.

A F-1 volta no fim de semana de 11 a 13 de outubro no dificílimo circuito de Suzuka, no Japão. Até lá, a fleuma (pelo menos aparente) de Mattia Binotto vai ser posta à prova. Talvez ele hoje compartilhe da opinião de Toto Wolff, o chefão da Mercedes, que preferiu manter o eficiente mas pacífico Valtteri Bottas ao lado de Hamilton a trazer o aguerrido e veloz Esteban Ocon. Ao contrário da Mercedes, em 2020 a Ferrari terá de conviver com a beligerância que ela mesma deixou se agigantar entre seus dois pilotos. Uma escolha cujo custo ficou evidente neste GP da Rússia.