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Para cientista, terapia hormonal anula vantagem de atletas transgênero

Joanna Harper é cientista, corredora e transgênero - Reprodução/Facebook
Joanna Harper é cientista, corredora e transgênero Imagem: Reprodução/Facebook

Talyta Vespa

Do UOL, em São Paulo

17/12/2019 04h00

Pioneira nos estudos sobre pessoas transgênero no esporte, a física médica e corredora canadense Joanna Harper, 62, saiu dos Estados Unidos e começou uma nova vida na Inglaterra no ano passado. Mulher transexual e cientista —ela começou a pesquisar os efeitos da terapia hormonal no esporte a partir da própria experiência —, foi convidada a liderar uma pesquisa sobre atletas trans em parceria com a Escola de Ciências do Esporte, Exercício e Saúde da Universidade de Loughborough, cidade que fica a 180 quilômetros de Londres.

Além de atuar nas pesquisas, a física assessora o COI (Comitê Olímpico Internacional) a respeito de questões envolvendo atletas transexuais no esporte mundial. Quando começou a transição, já tardia, aos 47 anos, Joanna sentia dificuldade em encontrar informações sobre os efeitos dos hormônios no desempenho esportivo. Atleta desde a infância, passou, então, a usar a si mesma como referência para as primeiras anotações: ao correr, cronometrava o tempo que fazia e calculava as alterações na velocidade ao longo do tratamento. Agora, inicia uma nova fase do trabalho de pesquisa, acompanhando em laboratório o desempenho de outros atletas trans.

Em entrevista exclusiva ao UOL Esporte, a pesquisadora comenta o projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo e pretende determinar o sexo biológico como único fator competitivo, se emociona ao falar do divórcio, consequência da transição de gênero, e da reação da mãe, que sugeriu que ela recebesse choques elétricos.

"Aos seis anos, perguntei a um amigo se ele tinha vontade de ser menina. Ele reagiu mal. Ali, me senti uma aberração"

UOL Esporte - Existe um projeto de lei na Assembleia Legislativa de São Paulo que quer definir o sexo biológico como único fator de competição no esporte. O que a senhora pensa sobre isso?

Joanna Harper: Mulheres trans apresentam vantagens e desvantagens em relação às mulheres cisgênero [pessoas do sexo feminino que se identificam como mulheres]. Sabemos que toda vez que uma mulher trans ganha algo, a mídia fica louca; que mulheres trans ainda são sub-representadas no esporte. Só que todo atleta tem vantagens e desvantagens. A altura de uma mulher trans em relação à de uma mulher cisgênero pode ser vantagem na quadra de basquete, mas pode ser desvantagem para uma ginasta. A questão mais importante não tem a ver com isso, mas, sim com o espaço: mulheres ou homens trans podem, verdadeiramente, competir com pessoas cis? A resposta está longe de ser sim. E o que sobra para eles?

Seguindo esse critério, os homens trans estariam, então, em desvantagem em relação aos atletas cisgênero. Como a terapia hormonal interfere no desempenho dentro do esporte?

Homens trans tomam testosterona, a melhor droga que existe para um bom desempenho. Ainda assim, começam de um ponto de desvantagem. Com muito trabalho, paciência e testosterona, os homens trans podem ter sucesso nos esportes masculinos. [O boxeador] Patrício Manuel, [o nadador] Schuyler Bailar e [o tiratleta] Chris Mosier são a prova disso.

Quanto tempo de tratamento é necessário até atletas trans se tornarem hormonalmente semelhantes a competidores cisgênero?

Não sabemos ao certo, mas, segundo as pesquisas que tenho desenvolvido, um ano de terapia hormonal é suficiente. Homens e mulheres são separados no esporte porque as vantagens que os esportistas masculinos têm sobre as atletas impedem uma competição significativa entre os dois grupos. Penso que, uma vez que os atletas trans se tornam hormonalmente semelhantes aos competidores cisgênero, torna-se razoável permitir que eles compitam de acordo com o gênero. Antes, não.

A senhora foi seu próprio objeto de pesquisa por 62 anos. O que percebeu de diferente no seu desempenho como atleta quando começou a terapia hormonal?

Comecei a terapia hormonal em agosto de 2004 e, em nove meses, estava correndo 12% mais devagar, e essa é a diferença entre corredores de longa distância masculinos e femininos. Essa mudança me inspirou a estudar atletas trans. Minha transição não foi tão boa para minha família. Minha esposa se divorciou de mim, e minha mãe me disse que nunca mais queria me ver.

Além da corrida, quais outros esportes a senhora praticou e como a terapia hormonal influenciou no seu desempenho?

Pratiquei muitos esportes quando criança: atletismo, basquete, golfe, badminton e até um pouco de vôlei. Quando eu tinha vinte anos, eu corria muito, 150, 200 quilômetros por semana, sobrando pouco tempo para outros esportes. Corri maratonas, pista e cross country. Depois da transição, fiquei mais lenta, como disse anteriormente. Comecei a correr na categoria feminina e fui espancada por mulheres que estavam bem atrás de mim antes de eu fazer a transição. Estava correndo 5 minutos mais lentamente ao longo de 10 quilômetros de corrida, então as mulheres que, antes, estavam três minutos atrás de mim passaram a ficar, então, dois minutos à minha frente.

Em que momento da vida a senhora cogitou, pela primeira vez, ser menina e, não, menino?

Eu sempre soube que era menina, apesar de ter começado minha transição apenas aos 47 anos. Lamento não ter começado mais cedo. Foi muito difícil pensar nisso quando eu era jovem, eram outros tempos e me faltava coragem. Tentei, durante boa parte da minha vida, esquecer e negar o fato de que sou mulher. Ainda assim, sempre tive uma vaga sensação de infelicidade me acompanhando. Sempre inventei desculpas para não ser feliz, mas a verdadeira razão dessa angústia era a vida que eu fingia viver.

Existe algum fato que marcou sua infância de criança trans?

Me lembro que, quando eu tinha seis anos, perguntei a um amigo na escola se ele tinha vontade de ser menina. Ele não reagiu bem, olhou para mim de maneira estranha. Foi ali que percebi que eu era diferente, mas não entendia a dimensão dessa diferença. Eu achava que era uma aberração. Muitas pessoas na escola pensavam que eu era gay. A melhor amiga da minha primeira namorada disse que sempre achou que eu fosse gay. [A ex-tenista] Renée Richards foi a primeira pessoa trans de quem me lembro. Acompanhei toda a merda que ela teve de enfrentar e pensei: "Não sou como ela e nunca vou me colocar dessa maneira". Acho que estava errada.

Além do processo doloroso com a sua família, quais foram os outros espaços que a senhora tentou ocupar quando começou a transição de gênero?

Quando comecei a ler sobre pessoas trans e, finalmente, aceitei que era uma, procurei uma terapeuta. Ela pediu que eu fizesse uma lista de todas as coisas que eu perderia se fizesse a transição. Minha esposa e minha mãe estavam nessa lista, mas o esporte também. Isso foi em março de 2004 e, foi só em junho de 2004 que o COI possibilitou que atletas transgênero pudessem competir. Foram sete meses até começar a terapia hormonal. O começo do tratamento foi um desafio: eu chorava muito, fiquei muito instável, mas também empolgada ao ver meu corpo se tornando mais feminino. Chorava em todo canto, até no cinema. Comecei a me adaptar aos efeitos dos hormônios depois de seis meses.

A transição resultou no seu divórcio. Como foi a primeira conversa com a sua mulher quando você decidiu começar o tratamento?

Contei a ela sobre minha disforia de gênero antes de nos casarmos. Pensei que estava tudo sob controle, mas não estava. Pensei que ela me aceitaria porque, mesmo depois de eu contar, ela quis se casar comigo. Depois de seis meses de terapia hormonal, nos divorciamos. Mas isso me fez sofrer muito, então prefiro não falar sobre.

Em que momento houve o rompimento com a sua mãe?

Eu contei à minha mãe sobre minha transexualidade no verão de 2004. Eu nasci no Canadá, me mudei para os Estados Unidos e fui visitá-la naquele ano. Hoje, moro em Londres. Quando disse a ela que estava passando pela terapia hormonal, ela me falou que um choque elétrico seria uma boa solução para mim. Como eu não voltei atrás, permaneci firme na minha decisão de continuar na terapia, ela disse que não queria mais me ver. Foi uma barra muito pesada. Ao mesmo tempo, meus seios começaram a crescer, meu corpo foi mudando e eu fui, finalmente, me reconhecendo e ficando mais feliz. Depois de alguns anos, minha mãe mudou de ideia e decidiu se aproximar. Ainda assim, tivemos uma relação muito conturbada e difícil até a morte dela.

O que você já descobriu sobre transgênero no esporte?

A pesquisa leva muito tempo e estamos no começo. Esse mês, nos encontramos com nossa primeira participante e começaremos a testá-la em cerca de seis semanas. Traremos os atletas para o laboratório de exercícios e vamos examiná-los antes de iniciarem a terapia hormonal e depois, pelos próximos dois anos. Te conto quando tiver os primeiros resultados.