UOL Esporte - Copa 2006UOL Esporte - Copa 2006
UOL BUSCA

O Quadrado Mágico

Kaká nega clichê e mostra que craque pode ter "berço de ouro"

Rodrigo Bertolotto

Em São Paulo

Histórias de jogador pobre que saiu do gueto pelo futebol são milhares no Brasil. De tão repetidas nem seriam notícia. Se o inusitado é o que gera interesse, a trajetória de Kaká é a única a ser contada. Uma biografia que mais parece saída dos primórdios aristocráticos do futebol no país, com ingredientes como uma família abastada, a descoberta do futebol dentro da escola particular e legiões de moçoilas suspirando pelo galã dos gramados.

crédito
crédito
crédito
crédito
crédito
crédito
crédito
"Hoje em dia, sou eu que sigo ele." Assim o engenheiro civil Bosco Leite sintetiza a mudança de papéis com seu filho. Kaká nasceu em Brasília. Aos 4 anos, vivia em Cuiabá. E, aos 7, já estava em São Paulo, sempre acompanhando os deslocamentos do pai. Agora é Bosco que praticamente deixou a profissão e o país para cuidar do gerenciamento do meio-campista do Milan e de seleção brasileira. Com a ida de Kaká para a Itália, a família foi junto. Até o irmão caçula, Digão, 20, arrumou vaga de zagueiro no Milan B e depois foi para o Rimini, da segunda divisão. "Estamos acostumados com essa vida nômade, de mudar toda hora de cidade, estado e país. Isso acabou ajudando na nossa união", analisa Bosco. O filho Digão concorda: "Kaká sempre foi meu melhor amigo. E, a cada mudança, a família fica mais apegada." Foi o irmão mais novo o inventor do apelido que virou nome artístico, Kaká, por não conseguir falar Ricardo quando era pequeno.
Não por nada recebeu o apelido de "O Príncipe" e encontrou sua princesa, Caroline, 18, com quem casou no ano passado. "Eduquei minha filha do mesmo jeito em que fui educada. Uma criação de princesa", revela a socialite e sogra Rosangela Lyra. A formação: aulas de inglês, francês, piano e equitação. Ao currículo da jovem dona de casa, Caroline ainda anexou um curso na renomada escola de culinária "Le Cordon Bleu".

E Lyra conseguiu achar defeito no tal "genro que pediu para Deus". Ajustada ao rótulo de grã-fina católica carola, não gostou do casamento em uma igreja pentecostal ("seria pior se ela arrumasse alguém de uma religião que não acredita em Jesus") e da cerimônia sem os flashes da imprensa ("pode ficar antipático, como no casamento de Ronaldo e a Daniela Cicarelli").

A socialite é representante da Christian Dior no país e especialista em mercado de luxo, dando palestras e cursos no assunto. O genro, outra vez, está no time rival: é modelo da grife concorrente Armani. Kaká é ainda garoto-propaganda do Santander, da Ambev, da Adidas e da Gillette. "Ele tem uma imagem diferenciada. É um atleta com o mínimo de risco de ter a imagem arranhada", teoriza Danielle Panissa, diretora de marketing da multinacinal de lâminas de barbear.

Kaká foge das polêmicas tanto quanto da marcação rival. Por isso, a festa de casamento foi um terreno movediço em que ele se saiu bem. Além da sogra, outro foco estava no local da cerimônia: a sede da Renascer em Cristo, igreja evangélica comandada pela "bispa" Sônia Hernandes, famosa por seus slogans ("Jesus é uma coisa quentinha, fofinha") e seus problemas com a Justiça (foi investigada, junto com o marido, Estevam, por crimes patrimoniais).

Aos 14 anos, Kaká foi batizado nessa religião. Já era jogador do São Paulo. Ia semanalmente ao templo localizado no bairro do Cambuci. A família já vinha de uma formação protestante. E foi no Colégio Batista Brasileiro que o garoto mostrou os primeiros lampejos do talento (ele prefere falar em "dom divino").

Estava na primeira série, quando o professor José Carlos Montoro chamou a mãe do menino, dona Simone. O motivo não era nem baixas notas, nem mau comportamento, coisas que não existem em seu boletim escolar. "Disse que ela devia levá-lo para uma escolinha de futebol que ele seria uma craque da seleção", afirma o professor de educação física, embasbacado porque nem conseguia tirar a bola daquele garoto franzino durante a aula. Em outra oportunidade, Kaká fez um golaço na quadra, dominando no peito, chapelando o zagueiro e mandando a bola no ângulo. Com todos os presentes aplaudindo, Montoro repetiu o gesto: tirou o apito da boca e homenageou o aluno. "Ele resolvia os jogos sozinho, porque estava muito acima dos outros. Se você vê o estilo dele agora, ele joga mais coletivamente e usa sua visão de jogo. Isso ele aprendeu no clube", afirma Ênio de Oliveira, outro professor de educação física que acompanhou Kaká.

Na escola batista também surgiam as primeiras kakazetes. "Tinha umas meninas que passavam em frente da classe dele de olho esticado, só para vê-lo, porque ele já tinha fama de jogar bem. Mas ele nem ligava", conta a então professora de geografia Selma Guedes. Com seu cabelo tijelinha e corpo magrelo, Kaká pouco lembra o príncipe das adolescentes.

Kaká foi matriculado numa escolinha à beira da avenida Sumaré (depois demolida para dar lugar a uma filial da locadora Blockbuster). Jogou ainda em uma equipe infantil de Alphaville, antes de se destacar nas equipes de base do São Paulo. Aos 10 anos, sua família trocou o apartamento em Perdizes por uma casa no Morumbi, perto da sede são-paulina. O curioso é que Perdizes, um bairro de classe média alta onde passou sua tenra infância, era e é habitat natural de muitos jogadores, afinal, é perto dos centros de treinamento de Palmeiras e São Paulo, ambos na vizinha Barra Funda. Atraído por uma bolsa de estudos, porém, Kaká trocou a escola religiosa pela rede Objetivo, que arregimenta promessas de outros colégios e assim ganha campeonatos, como a Copa Reebok em 1994.

Apesar da habilidade, Kaká esbarrava no corpo franzino e caía muito nos treinos. Aos 15 anos, Kaká tinha 1,65 m, 50 quilos e um atraso em dois anos na idade óssea. O desenvolvimento veio depois, com ajuda de uma preparação física adequada. E isso aconteceu mesmo com a alimentação reforçada comandada por dona Simone. Kaká costumava levar os amigos de São Paulo para almoçarem em casa e provarem a picanha no alho e os bolos que sua mãe fazia. "Tivemos o privilégio de um boa condição de vida, mas sabíamos como é duro ficar longe da família. Por isso, convidávamos os garotos que viviam no alojamento para aproveitarem a folga com a gente", revela o pai Bosco.

O resto todo mundo sabe: estréia no São Paulo em 2001, gols decisivos na final da Taça Rio-São Paulo, salário mensal pulando de R$ 700 para R$ 12 mil, Mundial sub-20, kakazetes, prêmio de revelação de 2001, melhor campanha na fase regular no Brasileiro-2002, muitas cartas de fãs, convocação para a campanha do penta em 2002, o número 23 da camisa, os 15 minutos contra a Costa Rica, a comemoração em Yokohama (Japão), a transferência milionária para o Milan em 2003, scudetto na primeira temporada na Itália, os elogios do magnata e político Silvio Berlusconi, gols, festejos mostrando a camiseta "I Belong To Jesus", a final da Liga dos Campeões em 2005, os comerciais e agora a chance de brilhar na Copa da Alemanha como titular no quadrado mágico, com Adriano, Ronaldo e Ronaldinho.

Publicado originalmente em 12 de maio de 2006

SELEÇÕES